domingo, 3 de abril de 2016

Svetlana Aleksiêvitch. VOZES DE CHERNOBIL (1997)



Esse cenário de guerra... Essa cultura de guerra ruiu aos meus olhos. Ingressamos num mundo opaco, onde o mal não dá explicações, não se revela e não conhece leis.
Eu vi como o homem pré-Chernobil se converteu no homem pós-Chernobil.
(...)
O tempo mordeu o próprio rabo, o início e o fim se tocaram. Para aqueles que lá estiveram, Chernobil não terminava em Chernobil. Esses homens não regressaram de uma guerra, mais parece que voltaram de outro planeta. Compreendi que de maneira totalmente consciente aqueles homens convertiam seus sofrimentos em novo conhecimento. Ofereciam-no, dizendo: vocês haverão de fazer algo com isso, saberão como utilizá-lo.
Há um monumento aos heróis de Chernobil. É o sarcófago que construíram com as próprias mãos e no qual depositaram a chama nuclear. Uma pirâmide do século XX.

Reator 4 em 1986

Sarcófago do Reator 4 em 1995

Na terra de Chernobil, sente-se pena do homem. Mas o bicho dá mais pena ainda. Não estou desdenhando, vou explicar. O que restou na zona morta depois que as pessoas foram embora? As velhas tumbas e as fossas biológicas, como se referem aos cemitérios de animais. O homem só salvou a pele, todo o resto ele atraiçoou. Depois que as populações partiram das aldeias, pelotões de soldados e caçadores foram lá e abateram os animais. E os cachorros acorriam à voz humana, e também os gatos... E os cavalos não podiam entender nada. E eles não tinham culpa, nem as bestas nem os pássaros, e morriam em silêncio, isso é ainda mais terrível. Houve um tempo em que os índios do México e mesmo as populações russas pré-cristãs pediam perdão aos animais e pássaros quando os sacrificavam para se alimentar. No Egito antigo, os animais tinham direito a se queixar do homem. Num dos papiros conservados nas pirâmides está escrito: "Não há nenhuma queixa do touro contra N." Antes de partir para o reino dos mortos, os egípcios liam uma prece: "Não ofendi nenhum animal. E não o privei nem de grão nem de erva."
O que a experiência de Chernobil nos deu? Terá nos conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos "outros"? 
Certa vez, vi como os soldados entraram numa aldeia já evacuada e começaram a atirar . Os gritos impotentes dos animais... Eles gritavam em suas línguas. Sobre isso já se escreveu no Novo Testamento. Jesus Cristo entrou ao Templo de Jerusalém e lá viu animais preparados para o ritual de sacrifício: com o pescoço cortado, esvaindo-se em sangue. Jesus gritou:"Haveis convertido a casa de orações em covil de bandidos." Poderia ter acrescentado: "Em matadouro." Para mim, as centenas de fossas biológicas abandonadas na zona são o mesmo que os túmulos funerários da Antiguidade. Mas dedicados a que deuses? Ao deus da ciência e do conhecimento ou ao deus do fogo? Nesse sentido, Chernobil foi mais longe que Auschwitz e Kolimá. Mais longe que o Holocausto. Chernobil nos propõe um ponto final. Não se apoia em nada.
Observo o mundo ao redor com outros olhos. Uma pequena formiga se arrasta pela terra, e ela agora me é próxima. Um pássaro voa no céu e também me é próximo. Entre mim e eles, o espaço se reduziu. Não há mais o abismo de antes. Tudo é vida.
Lembro também do que me contou um velho apicultor (e depois ouvi de outras pessoas): "Saí ao jardim pela manhã e notei que faltava algo, faltava o som familiar. Nem sequer uma abelha. Eu não ouvia nenhuma abelha! Nem uma! O que é isso? O que está acontecendo? No segundo dia, elas não voaram. E também no terceiro. Depois nos informaram que ocorrera uma avaria na central nuclear, que era perto. Durante muito tempo não soubemos de nada. As abelhas sabiam, mas nós não. Agora, se noto algo estranho, vou observá-las. Nelas está a vida."
Outro exemplo. Eu conversava com pescadores junto ao rio e eles me contaram: "Nós esperávamos que nos explicassem pela tevê, que dissessem como nos salvar. E as minhocas... Eram minhocas comuns, mas entravam para dentro da terra, desciam fundo, meio metro, talvez 1 metro. E nós não entendíamos. Nós cavávamos, cavávamos. Não conseguíamos nenhuma minhoca para pescar."
Quem de nós é o primeiro, quem está mais sólida e eternamente ligado à terra, nós ou eles? Devíamos aprender com eles como sobreviver. E como viver.




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