domingo, 4 de dezembro de 2011

"Locais": Lars Von Trier. ANTICRISTO (2009) & Kenzaburo Oe. O ESPECTRO DE UMA PULGA (1983)



Depois, existe a lembrança de um episódio que me perturbou profundamente na pré-adolescência, não tanto por nele estar envolvido um deficiente mental, mas por haver, sobreposta a ele, certa percepção profunda relacionada a um "local" e que me fez pensar na necessidade de assegurar um "local" onde eu e Iiyo pudéssemos viver.
Foi na primavera do em que, depois de deixar para trás o vale na floresta - lembro-me de ter sentido que aquela era uma fase transitória, passada a qual eu haveria de retornar a meu vale -, eu começara a viver numa pensão familiar de uma cidade provinciana. Era também o último ano de ocupação do território japonês pelas Forças Aliadas, e a presença desse Exército e o episódio estão intimamente ligados, ao menos em minha imaginação.
O incidente tinha sido noticiado num jornal da província - o jornal me foi mostrado posteriormente pelo dono do pensionato, militar que perdera o emprego com o término da guerra - e, de acordo com a reportagem, um menino com problemas mentais havia assassinado uma numa pequena ilha do mar Interno. Ele havia empalado a garota com um enorme espeto de bambu desde a vagina até a garganta. Ao ser preso no local logo depois do crime, o menino, da minha idade, usava um chapéu feito de jornal dobrado cujo aspecto lembrava o quepe usado pelos soldados americanos. Eu mesmo sabia como dobrar o jornal para obter este tipo de quepe, a dobradura andou em voga por um bom tempo...
Lembr0-me também do ex-capitão me dizendo que não queria nenhum de nós, jovens, influenciados por aquele incidente, mas o que me abalara profundamente não tinha sido o detalhe sexual do crime. (Não obstante, lembro-me de ter pensado, com o espanto de quem faz uma nova descoberta: "Realmente, há lúmen interligando o corpo humano desde a genitália até a garganta!".) O que realmente me abalou foi a foto do local do crime que acompanhava a reportagem, uma horta estreita de aspecto abandonado na encosta da montanha de uma ilha, cercada de bambuzal e de arbustos densos, um grotão onde a terra era sempre úmida e fria... Ocorre-me agora que existe semelhança topográfica entre uma ilha pequena e um vale no meio de uma floresta - floresta é mar, muito embora ilha e vale se relacionem inversamente em termos de projeção e reentrância -, mas, seja como for, lembrei-me então que havia em meu vale um lugar semelhante e o mentalizei. O ser humana pratica atos cruéis e indecentes em "locais" semelhantes. Nesse caso, não é o ser humano que age, o "local" é o que o faz agir. Segundo diziam, o menino era débil mental, ou seja, um tipo facilmente influenciado pelo magnetismo "local". No meu vale, as crianças evitavam frequentar tais "locais", e os adultos que tinha de arar essas terras - gente obrigada a frequentá-las por contingências da vida, gente que morria cedo sem que ninguém lhes estranhasse a morte prematura e ao redor das quais pairava algo escuro, perceptível mesmo às crianças - para lá seguiam contrafeitos e com feições contraídas.
A essa altura, percebi consternado que, depois de abandonar meu vale, eu vivia naquele momento num local de estranhos, numa cidade provinciana onde não havia florestas, apenas um rio desmesuradamente grande e árvores desconhecidas, para mim desprovidas de qualquer indicativo, e onde eu não sabia localizar os "locais" repugnantes. Nessas circunstâncias, corria o risco de me ver num desses "locais" sem saber. Eu podia até estar num desses "locais" naquele exato momento, não podia?

OE, Kenzaburo. Jovens de um novo tempo, despertai! São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.132-134.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Kenzaburo Oe. JOVENS DE UM NOVO TEMPO, DESPERTAI! (1983)


De fato eu apreciava bastante esse desenho. A figura tinha sido impressa originariamente na capa de uma coletânea de ensaios do dr. W, "Sobre a loucura e outros assuntos" [Kyoki ni tsuite nado], publicada logo após a guerra. Segundo me lembro, eu havia mandado emoldurá-la e a pusera em meu gabinete porque fora profundamente influenciado pelo seguinte trecho desse livro: "Grandes obras inexistiriam sem loucura, dizem alguns. É mentira. Obras realizadas com loucura vêm sempre acompanhadas de devastação e sacríficio. Obras verdadeiramente grandiosas são realizadas de maneira honesta, persistente e firme por indivíduos humanos com a acentuada consciência da própria suscetibilidade à loucura?"

OE, Kenzaburo. Jovens de um novo tempo, despertai! (tradução de Leiko Gotoda). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.79-80.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Charles Bukowski. MISTO QUENTE


O problema era que você precisava ficar constantemente escolhendo entre uma opção horrível e outra pavorosa, e, independente da sua escolha, eles cortavam mais um pedaço da sua carne, até que não restasse mais nada para descarnar. Por volta dos 25 anos, a maioria das pessoas estava liquidada. Uma maldita nação inteira de desgraçados dirigindo carros, comendo, tendo bebês, fazendo todas as coisas da pior maneira possível, como votar em candidatos à presidência que os fizessem lembrar a si mesmos.

Eu não tinha interesse. Eu não tinha interesse por nada. Não fazia a mínina ideia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela vida. Pareciam entender algo que me era inacessível. Talvez eu fosse retardado. Era possível. Frequentemente me sentia inferior. Queria apenas encontrar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. Suicídio? Jesus Cristo, apenas mais trabalho. Sentia que o ideal era poder dormir por uns cinco anos, mas isso eles não permitiriam.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.191-192.
_________

Podia ver a estrada à minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria algum lugar para me esconder, um lugar em que ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava mas também me deixava enojado. Pensar em ser um advogado ou um professor ou um engenheiro, qualquer coisa desse tipo, parecia-me impossível. Casar, ter filhos, ficar preso a uma estrutura familiar. Ir e retornar de um local de trabalho todos os dias. Era impossível. Fazer coisas, coisas simples, participar de piqueniques em família, festas de Natal, 4 de julho, Dia do Trabalho, Dia das Mães... afinal, é para isso que nasce um homem, para enfrentar essas coisas até o dia de sua morte? Preferia ser um lavador de pratos, retornar para a solidão de um cubículo e beber até dormir.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.212.
_________

E minhas questões pessoais continuavam tão más e lamentáveis quanto no dia em que nasci. A única diferença era que agora eu podia beber de vez em quando, embora nunca o suficiente. A bebida era a única coisa que impedia um homem de se sentir para sempre atordoado e inútil. Todo o resto ia furando e furando sua carne, arrancando seu pedaços. E nada tinha o menor interesse, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas, todas iguais. E eu teria que viver com esses fodidos pelo resto da minha vida, pensei. Deus, todos eles tinham cus e órgãos sexuais e bocas e sovacos. Cagavam e tagarelavam, e todos eram tão inertes quanto esterco de cavalo. As garotas pareciam legais a certa distância, o sol resplandecendo em seus vestidos, em seus cabelos. Mas vá se aproximar e ouvir seus pensamentos escorrendo boca afora, você vai sentir vontade de cavar um buraco ao sopé de uma colina e se entrincheirar com uma metralhadora. Eu certamente nunca conseguiria ser feliz, me casar, nunca teria filhos. Inferno, eu nem mesmo conseguia um emprego de lavador de prato.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.270.
_________

A vida das pessoas sãs, dos homens comuns, era uma estupidez pior do que a morte. Parecia não haver alternativa possível. A educação também parecia uma armadilha. A pouca educação que eu tinha me permitido havia me tornado ainda mais desconfiado. O que eram médicos, advogados, cientistas? Apenas homens que tinham permitido que sua liberdade de pensamento e a capacidade de agir como indivíduos lhes fosse retirada. Voltei para meu barracão e enchi a cara...

Sentado ali, bebendo, considerei a opção do suicídio, mas me senti estranhamente apaixonado pelo meu corpo, pela minha vida. Apesar das cicatrizes que marcavam meu corpo e minha existência, ambos eram propriedades minhas. Eu podia me levantar agora e sorrir com escárnio para meu reflexo no espelho da cômoda: se você tem que ir, que leve ao menos uns oito juntos, uns dez, uns vinte...
Era uma noite de dezembro, um sábado. Estava no meu quarto e tinha bebido muito mais do que o de costume, acendendo um cigarro no outro, pensando nas garotas e na cidade e nos empregos e nos anos que ainda viriam. Olhando para o devir, eu gostava muito pouco do que via. Eu não era um misantropo ou um misógino, mas gostava de estar sozinho. Era bom estar solitário num lugarzinho, sentado, fumando e bebendo. Sempre tinha sido uma boa companhia para mim mesmo.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.305.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Amor em 3 tempos



Mala Vida

Tu me estas dando mala vida

Yo pronto me voy a escapar

Gitana mia por lo menos date cuenta

Gitana mia por favor

Tu me dejas respirar

Tu me estas dando mala vida

Cada dia se la traga mi corazon

Dime tu porque te trato yo tan bien

Cuando tu me hablas como un cabron

Gitana mia

Mi corazito estas sufriendo

Gitana mia por favor

Sufriendo mal nutricion

Tu me estas dando mala vida



domingo, 19 de junho de 2011

Haruki Murakami. NORWEGIAN WOOD (1987)



filme do cineasta franco-vietnamita Tran Ahn Hung inspirado no romance de Murakami

*

Uma vez o avião pousado, os sinais de probido fumar se apagarm e uma música de fundo começou a tocar suavemente pelos alto-falantes do teto. Era "Norwegian Wood" dos Beatles,numa lânguida execução orquestrada. A melodia me perturbou, como sempre. Mas desta vez ela me emocionou bem mais do que o usual, revolvendo violentamente algo dentro de mim.
[...] a música mudou para uma canção de Billy Joel. Ergui o resto e, contemplando as nuvens negras que pairavam sobre o mar do Norte, refleti sobre as muitas coisas perdidas no curso da minha vida até aquele momento. O tempo perdido, pessoas mortas ou desaparecidas, emoções que eu nunca mais experimentaria.

MESMO HOJE, PASSADO 18 ANOS, ainda sou capaz de relembrar nitidamente a paisagem da pradaria. [..] Enquanto caminhávamos, Naoko me contou sobre o poço.
Que fascinante é a memória. Enquanto eu estava dentro dessa paisagem praticamente não prestei atenção nela. Não poderia sequer imaginar que 18 anos mais tarde a relembraria em seus pormenores, apesar de nada ter visto nela de tão impressionante. Para ser sincero, na época a paisagem não me causou nenhum interesse em particular. Eu pensava apenas em mim, na linda garota caminhando ao meu lado, no nosso relacionamento e novamente em mim. Estava numa idade na qual não importa o que presenciasse, sentisse e pensasse, tudo no final voltava às minhas mãos como um bumerangue. Como se isso não bastasse, eu estava apaixonado. Uma paixão complicada. Não me sobrava tempo para prestar atenção à paisagem a meu redor.
Agora, porém, a primeira coisa a me vir à mente é a cena da pradaria. O cheiro do capim, a brisa fresca, a silhueta das montanhas, o latido do cão: eram essas coisas que antes de mais nada me assaltavam a memória. Muito distintamente. De tão nítidas, eu tinha a impressão de que se estendesse o braço poderia traçar com o dedo o contorno de cada uma delas. Entretanto, não se via ninguém dentro dessa paisagem. Ninguém. Nem Naoko nem eu. Pergunto-me aonde afinal fomos parar. Como algo assim aconteceu? Aonde foram parar as coisas aparentemente tão importantes: eu, ela, meu mundo? No momento, sequer consigo recordar de imediato o rosto de Naoko. O que tenho entre as mãos é apenas uma paisagem deserta.
É claro que, com tempo suficiente, sou capaz de recordar seu rosto. Suas pequenas mãos frias, os lindos cabelos lisos e macios ao toque, a pequena pinta logo abaixo do lóbulo redondo e delicado da orelha, o casaco chique de pêlo de camelo que ela costumava usar no inverno, o hábito de sempre encarar o ouvinte ao fazer uma pergunta, a voz por vezes ligeiramente trêmula por algum motivo (como se ela tivesse falando de cima de um morro castigado pelo vento): se eu sobrepusesse uma a uma essas imagens, seu rosto logo surgiria naturalmente. Em primeiro lugar, vem-me à memória seu perfil, provavelmente pelo fato de eu e Naoko sempre caminharmos lado a lado. Portanto, o que me lembro dela antes de tudo é sempre o contorno lateral do rosto, e, em seguida, ela se vira para mim, sorrindo docemente, meneando de leva a cabeça, conversando, encarando-me. Exatamente como se procurasse a sombra de um peixinho cruzando ao acaso o fundo de uma fonte límpida.
Mas demora algum tempo até o rosto de Naoko surgir em minha mente dessa forma. Com o passar dos anos, o tempo necessário gradualmente se alonga. Triste, mas é a pura verdade. Os cinco segundos de início suficientes para recordar seu rosto logo se transformam em dez, 30, um minuto. Encompridaram-se exatamente como sombras ao anoitecer. E provavelmente as sombras terminarão dragadas pela absoluta escuridão noturna. Minhas lembranças sem dúvida se distanciam cada vez mais do local onde Naoko costumava estar. Sem dúvida se afastam do lugar onde eu próprio costumava estar no passado. Apenas a paisagem, unicamente essa paisagem da pradaria em outubro, aparece em minha mente repetidas vezes, verdadeira cena simbólica cinematográfica. Sempre que aparece, essa cena dá um chute em alguma parte de meu cérebro. Vamos, acorde, eu continuo aqui; vamos, acorde e analise a razão de eu ainda permanecer por aqui. O chute nunca dói. Não há nenhum tipo de dor. A cada novo chute, apenas um som subsiste ecoando no vazio. E mesmo esse som provavelmente desaparecerá algum dia. Assim como todo o resto de extinguiu no final das contas. Entretanto, dentro do avião da Lufthansa, no aeroporto de Hamburgo, a paisagem chutava meu cérebro de maneira mais demorada e forte que o usual. Acorde, analise a razão. Por isso mesmo escrevo este livro. Sou do tipo de pessoa incapaz de entender bem alguma coisa, seja lá o que for, se não a puser por inteiro no papel.

MURAKAMI, Haruki. Norwegiam Wood. (trad. Jefferson José Teixeira). Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p.7-10.






Norwegian Wood (This bird has flown): I once had a girl, / Or should I say / She once had me. / She showed me her room, / Isn't it good? / Norwegian wood. / She asked me to stay and she told me to sit anywhere, / So I looked around and I noticed there wasn't a chair. / I sat on a rug, / Biding my time, /Drinking her wine. / We talked until two, / And then she said, / It's time for bed. / She told me she worked in the morning and started to laugh, / I told her I didn't and crawled off to sleep in the bath. / And when I awoke, / I was alone, / This bird has flown. /So I lit a fire, / Isn't it good? / Norwegian wood.

domingo, 5 de junho de 2011

Elvis Costello. COMO FAZER UMA CANÇÃO



O que aprendi? Bem, pode-se responder isso em vários níveis, não é? Pode-se responder num nível filosófico, ou a gente pode dizer: "Conheço o restaurante tal", ou "Use sempre um travesseiro de espuma".
Um dia, estive num quarto com o Chuck Berry. Disse a mim mesmo: Não quero conhecer você. Só quero olhar para você. Ele era de meter medo.
Todos nós não passamos de animais. É só o que nós somos e tudo o mais não passa de uma rebuscada justificativa de nossos instintos. É daí que vem a música. E a poesia romântica. E os romances ruins. Às vezes, quando termino de ler um romance ruim, digo: Você escreveu setecentas páginas só para dizer isso? Não poderia ter apenas dito 'Quero trepar!'?
É legal uma fruta no meio do dia.
A felicidade não é um desses bilhetinhos da sorte que vêm dentro de um biscoito. É algo mais profundo, mais vasto, mais divertido e mais arrebatador.
Não sou lá grande coisa para transmitir alegria.
Vocês têm de conhecer o Sting. É um cara superbacana. Sempre foi um cara legal, muito bonito, tem uma voz boa. Não é uma voz que me agrade em especial. Ele compôs uma ou duas canções boas de verdade, e foi tremendamente feliz em vários aspectos. É a idéia que certas pessoas têm de um sujeito sofisticado. Toca em festas de empresas; talvez ninguém o convide para festas melhores. Mas no mundo da música sempre tem alguém talhado para representar esse papel, e acho que é fácil para ele segurar a barra de ser uma espécie de saco de pancada. Não acho que seja um músico insincero. Só que, na música, não parece gostar das mesmas coisas que eu.
Canções são mais fortes do que livros.
Elvis provavelmente foi um pouco mais curioso do que os outros moleques, e por isso ele é o que é.
Nas canções de John Lennon, as pessoas tendem a destacar os versos que soam como epitáfios ou cartões de felicitação. É muito esquisito passar de carro no aeroporto de Liverpool e ver o logotipo com os desenhos dele e as palavras: "Acima de nós, só o céu". O céu está cheio de aviões! Mas, no fim, todo mundo acaba virando uma estamparia de toalha de mesa produzida em massa.
Vi um monte de lugares exóticos, no meu trabalho e em todas as minhas viagens. Mas o lugar que ainda quero ver é o que está nos olhos de alguém. Sabe como é: viaje menos, veja mais.
Não gosto desta idéia, cirurgia ocular. Essa eu não vou encarar. É que nem aumentar o pênis ou coisas do tipo.
Viver por um tempo muito longo é uma coisa apavorante.
Mais cedo ou mais tarde, vamos precisar de mochilas a jato para circular. E de capacetes espaciais, com bombinhas de Aerolin embutidas, para conseguir respirar. Sabe o que é o Aerolin? É aquele negócio que os asmáticos tomam. Hoje em dia, um monte de crianças têm asma. Em matéria de emporcalhar tudo, a gente fez mesmo um serviço de primeira.
Leia as revistas à margem da indústria da música. É aí que está a maior parte das músicas interessantes.
Antigamente o pessoal levava as coisas numa boa, não é mesmo? Eles tinham os blues, naquele tempo. Entendiam a idéia dos blues.
Eu usava o tempo todo aquelas lentes azuis. A gente fica mesmo deprimido se usa lentes azuis. Quando as pessoas dizem "você está vendo o mundo através de lentes cor-de-rosa", bem, eu não tenho idéia do efeito das lentes cor-de-rosa, mas conheço o efeito das lentes azuis. Elas deixam a gente triste.
Até 1971, eu não tinha nenhum disco lp do Bob Dylan. Para mim, ele era um grande artista de compactos. A gente ouvia Dylan no rádio. Que coisa chocante viver num mundo onde havia Manfred Mann, os Supremes, Engelbert Humperdinck e lá vem "Like a Rolling Stone". Era um mundo ótimo, um tempo empolgante.
A suposição de que uma coisa não é para nós é uma suposição que, cedo ou tarde, pode ser desfeita.
É muito importante conceder-se o direito de mudar de idéia. Porque, se a gente consumir toda a nossa energia em pôr a porta abaixo, o que é que vai fazer quando entrar lá?
Cantar com Emmylou Harris: "Se o paraíso existe, parece com isso?"
As pessoas não sabem que a música pode afetar o nosso sentido do olfato, mas pode.
Todas as canções são motivadas por vingança ou culpa? Eu falei isso? Eu devia estar entupido de Pernod.
Para compor canções, há uns cinco assuntos: Eu deixei você; Você me deixou; Eu quero você; Você não me quer; Acredito em alguma coisa. Cinco temas e doze notas. Mesmo assim, nós músicos até que nos saímos muito bem.


COSTELLO, Elvis. Revista Piauí, nº10, p.61, julho de 2007.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

SÓ OS METALEIROS SÃO FELIZES (2011)

Será que todo mundo quer ser o que não é? A minha resposta seria sim, não fosse a existência dos metaleiros.
Pense: você já viu algum metaleiro no camarote de carnaval? Já viu algum metaleiro estrelando comercial de cerveja? E um sex symbol metaleiro, já viu? Claro que não. O metal não está na moda, nunca esteve, jamais estará. E é justamente por isso que em show de heavy metal não tem área VIP, porque não há celebridade, todo mundo é igualitariamente metaleiro lá dentro.
Metaleiro é o que é. E graças a esse princípio simple, porém raro, só o metal é capaz de gerar um fenômeno chamado Anvil, a pior banda do mundo, um desastre musical que vem dando errado há mais de 30 anos. Você conhece quantas bandas com mais de três décadas de existência? Tem o Who, os Stones e... o Anvil. É tanta persistência, obstinação e falta de noção, que resolveram documentar: Anvil! The Story of Anvil é o melhor documentário musical que já vi, simplesmente porque conta a história de dois amigos que, com ou sem dinheiro, com ou sem sucesso, com ou sem talento, querem continuar sendo metaleiros.
Em um mundo em que todos querem ser o que não são, eu queria ser metaleiro, porque só os metaleiros usam jaquetas jeans sem manga e fazem air guitar sem vergonha. Só os metaleiros são felizes. De verdade.

SOKOL, Miguel. "Vida pop" em Rolling Stone Brasil, nº55, p.24, abril de 2011.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Charles Bukowski. O CAPITÃO SAIU PARA O ALMOÇO E OS MARINHEIROS TOMARAM CONTA DO NAVIO (1998)

29/08/1991......................................................................22:55

Aqui, há uma pequena sacada, a porta está aberta e posso ver as luzes dos carros na Harbor Freeway sul, nunca param, o rolar das luzes, sem parar. Todas aquelas pessoas. O que estão fazendo? O que estão pensando? Todos nós vamos morrer, que circo! Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros, mas não faz. Somos aterrorizados e esmagados pelas trivialidades, somos devorados por nada.
Continue, Mahler! Você fez com que esta fosse uma noite maravilhosa. Não pare, filho da puta! Não pare.



30/09/1991......................................................................23:36

Música horrível no rádio, mas não se pode esperar um dia 100 por cento. Se conseguir 51, você ganhou. Hoje foi um 97.
Vejo que Mailer escreveu um enorme romance novo sobre a CIA e etc. Norman é um escritor profissional. Uma vez pergunto à minha mulher: "O Hank não gosta dos meus livros, não é?". Norman, poucos escritores gostam do trabalho dos outros escritores. Eles só gostam deles quando morrem ou se já morreram há muito tempo. Os escritores só gostam de cheirar a própria merda. Sou um desses. Não gosto nem mesmo de falar com escritores, de vê-los ou, pior, de ouvi-los. E o pior é beber com eles, se babam todos, realmente são lamentáveis, parece que estão procurando pela asa da mãe.
Prefiro pensar sobre a morte do que sobre escritores. Muito mais agradável.
Vou desligar esse rádio. Os compositores às vezes estragam tudo. Se eu tivesse de falar com alguém, acho que preferiria muito mais um cara que conserta computadores ou um agente funerário. Com bebida ou sem bebida. De preferência, com.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Manoel de Barros. ESCOVAR (2003)

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a Infância. São Paulo: Planeta, 2003, I.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gérard Vincent. SEGREDOS DA HISTÓRIA E HISTÓRIA DO SEGREDO

PRÉ-HISTÓRIA DA HISTÓRIA?

O que presenciou o indivíduo que nasceu no começo do século XX e viveu conscientemente todo o nosso período (ele teria catorze anos no começo da Primeira Guerra Mundial)? Os massacres de 1914-1918, a Revolução Russa, Hitler e Auschwitz, Stálin e o Gulag, Hiroshima, Mao Tse-Tung e a Revolução Cultural, Pol Pot e o genocídio cambojano, a deriva da América Latina com seus caudilhos sanguinolentos e seus "desaparecidos", a África faminta, a revolução islâmica e o restabelecimento da charia.
Mas Hitler, Stálin, Mao e Pol Pot não teriam feito nada se o mimetismo não tivesse criado inúmeros sósias em miniatura. Por sinceridade, cinismo ou, mais simplesmente, por uma questão de sobrevivência, eles puderam dar, nas proporções que lhes foram permitidas, livre curso a seus impulsos sádicos.
Ainda mais angustiante é esta observação: os torturadores de hoje são muitas vezes as vítimas de ontem. Essa inversão dos papéis - o mártir que vira carrasco - levanta uma interrogação ontológica extremamente banal: o que é o homem? Instados a responder, os jovens candidatos à Escola Normal Superior reviram as bibliotecas. Nosso caminho é outro, indutivo. Foi a observação do trágico - Pol Pot "repetindo" para as elites cambojanas a armadilha de Esparta aos hilotas - que nos levou a colocar a mais antiga questão da história do pensamento. Se se crê - e tal é a nossa convicção - que a história vivida não se explica pela vontade da Providência, nem pelo papel determinante de tal ou qual personagem carismática, nem pelas decisões e medidas de uma pequena oligarquia, nem pela ação transformadora das instituições, nem pelo messianismo do proletariado e de todos os oprimidos, e sim pela soma/subtração (o saldo) das volições de uma multidão de indivíduos que interiorizaram uma ética - digamos um acordo entre normas e valores -, é certamente o estudo da vida privada que nos permite esperar um acesso ao conhecimento do sujeito social. É isso que nos estimula a prosseguir em nosso estudo, uma simples reflexão epistemológica, um primeiro passo de uma pré-história da história-narrativa.

VINCENTE, Gérard. "Uma história do segredo?" em História da vida privada vol.5: Da Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.177-178.

Haruki Murakami. MINHA QUERIDA SPUTNIK

Por que as pessoas têm de ser tão sós? Qual o sentido disso tudo? Milhões de pessoas neste mundo, todas ansiando, esperando que outros as satisfaçam, e contudo se isolando. Por quê? A terra foi posta aqui só para alimentar a solidão humana?
Virei-me de costas na laje, contemplei o céu e pensei em todos os satélites feitos pelo homem girando ao redor da Terra. O horizonte continuava delineado com um brilho tênue, e estrelas começavam a cintinlar no céu profundo, cor de vinho. Busquei entre elas a luz de um satélite, mas ainda estava muito claro para localizar um a olho nu. As poucas estrelas pareciam fixas no lugar, imóveis. Fechei os olhos e prestei bastante atenção aos descendentes de Sputnik, mesmo agora circulando ao redor da Terra, a gravidade seu único elo com o planeta. Almas solitárias de metal, na escuridão desobstruída do espaço, encontravam-se, passavam umas pelas outras e se separavam, nunca mais se encontrando. Nenhuma palavra entre elas. Nenhuma promessa a cumprir.

MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.195.

De modo que é assim que vivemos nossas vidas. Não importa quão profunda e fatal seja a perda, o quão importante fosse o que nos roubaram - que foi arrebatado de nossas mãos -, mesmo que mudemos completamente, com somente a camada externa de pele igual à de antes, continuamos a representar as nossas vidas dessa maneira, em silêncio. Aproximamo-nos cada vez mais do fim da dimensão do tempo que nos foi estipulado, dando-lhe adeus enquanto vai minguando. Repetindo, quase sempre habilmente, as proezas sem fim do dia-a-dia. Deixando para trás uma sensação de vazio imensurável.

[...]

Eu sonho. Às vezes, acho que é a única coisa certa a fazer. Sonhar, viver no mundo dos sonhos - exatamente como Sumire dizia. Mas não dura para sempre. A vigília sempre chega para me levar de volta.
Acordei às três da manhã, acendi a luz, sentei-me na cama e olhei o telefone ao meu lado. Imagino Sumire em uma cabine telefônica, acendendo um cigarro e apertando os botões do meu número. Seu cabelo está embaraçado; ela usa um paletó espinha-de-peixe masculino, vários tamanhos acima do seu, e meias que não combinam. Ela franze o cenho, engasgando um pouco com a fumaça. Demora para apertar todos os números corretamente. Sua cabeça está cheia de coisas que quer me contar. Ela é capaz de falar até amanhecer, quem sabe? Sobre, digamos, a diferença entre símbolos e signos. Meu telefone parece que vai tocar a qualquer minuto. Mas não toca. Deito-me e olho fixo para o telefone silencioso.


MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.226-227.

domingo, 17 de abril de 2011

Haruki Murakami. MINHA QUERIDA SPUTNIK

Quando a minha juventude escapuliu de mim? Pensei, de repente. Estava acabado, não estava? Ainda ontem eu estava crescendo. Huey Lewis and the News tinham algumas músicas de sucesso na época. Não fazia muito tempo. E agora, ali estava eu, dentro de um circuito fechado, girando minhas rodas. Sabendo que não chegaria a lugar nenhum, mas girando, assim mesmo. Eu tinha de. Tinha de mantê-las girando ou não conseguiria sobreviver.

MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.88-89.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Haruki Murakami. APÓS O ANOITECER

- Sabe, a nossa vida não se divide simplesmente em claro e escuro. Entre essas duas coisas existe uma zona intermediária chamada sombra. Reconhecer e compreender as diversas tonalidades que compõem essa sombra é o que faz uma inteligência saudável. E para adquirir essa inteligência saudável é necessário tempo e esforço. Eu não acho que você seja uma pessoa com personalidade sombria.
Maria pensa sobre o que Takahashi acaba de lhe dizer.
- Mas sou covarde.
- Não mesmo. Uma menina covarde jamais sairia sozinha pela cidade, aidna por cima à noite. Você veio até aqui em busca de algo, não é mesmo?
- Aqui? - pergunta Mari.
- Isso mesmo. Um lugar diferente do que está acostumada; um lugar distante do seu território.
- E será que eu encontrei algo? Aqui?

MURAKAMI, Haruki. Após o anoitecer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.190.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Enéas de Souza. O PENSAR DE HIROSHIMA, MON AMOUR (ALAIN RESNAIS, 1959)

O cinema é um pensar através da imagem e do som, envolvendo uma narrativa, não necessariamente uma história, e que através da montagem de seus vários blocos de imagens em movimento, desenvolve um ritmo, que é o ritmo da forma do cinema. Por isso Godard diz muito bem: o cinema é uma forma que pensa e que dá a pensar.

SOUZA, Enéas de. "Do horror à beleza do cinema" em Teorema, Porto Alegre, nº14, agosto 2009, p.5.

quarta-feira, 9 de março de 2011

John Fante. ESPERE A PRIMAVERA, BANDINI


Café da manhã para três meninos e um homem. Seu nome era Arturo, mas ele o detestava e queria se chamar John. Seu sobrenome era Bandini, mas queria que fosse Jones. A mãe e o pai eram italianos, mas ele queria ser americano. O pai era pedreiro, mas ele queria ser um lançador dos Chicago Cubs. Moravam em Rocklin, Colorado, população dez mil, mas ele queria morar em Denver, a cinqüenta quilômetros dali. Seu rosto era sardento, mas queria que fosse limpo. Freqüentava uma escola católica, mas queria ir para a escola pública. Tinha uma namorada chamada Rosa, mas ela o detestava. Era coroinha, mas era um demônio e detestava coroinhas. Queria ser um bom menino, mas tinha medo de ser um bom menino porque receava que seus amigos o chamassem de bom menino. Era Arturo e adorava o pai, mas vivia no temor do dia em que cresceria e seria capaz de bater nele. Venerava o pai, mas achava que a mãe era fraca e tola.

Fante, John. Espere a primavera, Bandini. tradução de Roberto Mugiatti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p.26

sexta-feira, 4 de março de 2011

Elias Canetti. MASSA E PODER

Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando: quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente - quão facilmente se pode rasgá-las, quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima.
Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si foram ditadas por esse temor de contato. As pessoas trancam-se em casas que ninguém pode adentrar, somente nelas sentindo-se mais ou menos seguras. O medo do ladrão não se deve unicamente a seu propósito de roubar, mas é também um temor ante seu toque súbito, inesperado, saído da escuridão. A mão transformada em garra é o símbolo que sempre se emprega para representar esse medo. Trata-se aí de uma questão que, em boa parte, manifesta-se no duplo sentido da palavra agarrar [angreifen]. Nesta encontram-se contidos ao mesmo tempo tanto o contato inofensivo quanto o ataque perigoso, e algo deste último sempre ecoa no primeiro. Já o substantivo agressão [Angriff], por sua vez, viu-se reduzido exclusivamente ao sentido negativo da palavra.

CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.13.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Jack Kerouac. ON THE ROAD



"Jack Kerouac" da Gang 90


Ontem a noite eu sonhei / que eu era Jack Kerouac / E subi num terraço: rua Houston / E vi as duas torres gêmeas brilhando.

O cabelo louro da menina / As tranças negras do crioulo / A sua guitarrra - a sua angústia calma.

Eu desci / Peguei a minha lata de spray / Sai pela rua, pintei dois olhos verdes nas paredes.

Ontem a noite eu sonhei / que conversava com Jack Kerouac / Ele chegava e me dizia / "Hey Man! eu renasci black / E agora sou um tocador de piston!" / Eu só sei que o som era tão alto que despertou o mundo inteiro / Eu acordei, e saí mandando brasa nas estradas do mundo.

Hey, Jack! Bye Bye

Trecho de On the road (Pé na estrada):

"Nessa época, 1947, o bop se alastrava loucamente pela América. Os caras no Loop continuavam soprando, mas com um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e outro período que começou com Miles Davis. E enquanto eu estava sentado ali ouvindo aquele som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação e em como todos eles na verdade viviam dentro dos limites de um único e imenso quintal, fazendo alguma coisa frenética, correndo dum lado para outro. E pela primeira vez na minha vida, na tarde seguinte, segui para o Oeste. Era um lindo dia ensolarado, perfeito para cair na estrada."

KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.31-32.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Charles Bukowski. PULP


Esperamos e esperamos. Todos nós. Não saberia o analista que a espera é uma das coisas que faziam as pessoas ficarem loucas? Esperavam para viver, esperavam para morrer. Esperavam para comprar papel higiênico. Esperavam na fila para pegar dinheiro. E, se não tinham dinheiro, precisam esperar em filas mais longas. A gente tinha de esperar para dormir e esperar para acordar. Tinha de esperar para se casar e para se divorciar. Esperar pela chuva e esperar pelo sol. Esperar para comer e esperar para comer de novo. A gente tinha de esperar na sala de espera do analista com um monte de doidos, e começava a pensar se não estava ficando doido também.

BUKOWSKI, Charles. Pulp. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p.86.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Natalia Ginzburg. LÉXICO FAMILIAR

Advertência

Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada: e toda vez que, nas pegadas do meu velho costume de romancista, inventava, logo me sentia impelida a destruir tudo o que inventara.
Os nomes também são reais. Ao sentir, escrevendo este livro, uma intolerância tão profunda pra com qualquer invenção, não pude mudar os nomes verdadeiros, que me pareceram indissolúveis das pessoas verdadeiras. Pode ser que desagrade a alguém encontrar-se deste modo, com seu nome e sobrenome, num livro. Mas quanto a isso não tenho nada a responder.
Escrevi apenas aquilo de que me lembrava. Por isso, se este livro for lido como uma crônica, será possível, objetar que apresenta infinitas lacunas. Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como se fosse um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer.
E nele há também muitas coisas que eu lembrava e que deixei de escrever, e dentre essas, muitas que diziam respeito diretamente à minha pessoa.
Não sentia muita vontade de falar de mim. De fato, esta não é a minha história, mas antes, mesmo com vazios e lacunas, a história de minha família. Devo acrescentar que, no decorrer de minha infância e adolescência, propunha-me sempre a escrever um livro que contasse sobre as pessoas que viviam, então, ao meu redor. Este, em parte, é aquele livro: mas só em parte, porque a memória é lábil, e porque os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos.

GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p.9-10.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Lester Bangs. ASTRAL WEEKS



No momento em que este texto é escrito, contam-se exatamente 10 anos, quase dia por dia, desde que
Astral Weeks, de Van Morrison, foi lançado. Foi especialmente importante para mim porque o outono de 1968 tinha sido uma época terrível: eu era então um farrapo físico e mental, nervos dilacerados, fantasmas pairando e aranhas invadindo a cabeça. Meus contatos sociais se reduziram a praticamente nenhum; a presença de outras pessoas me deixava nervoso e paranóico. Passava dias e noites intermináveis afundado em uma poltrona no quarto, lendo revistas, vendo TV, ouvindo discos, olhando o teto. Não tinha qualquer idéia de como melhorar a situação e provavelmente não teria feito nada a respeito mesmo que soubesse.
Astral Weeks seria o assunto deste artigo - ou seja, o disco de rock mais importante na minha vida até hoje - não importava como eu estivesse me sentindo quando ele saísse. Mas, na condição em que eu me encontrava, ele assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia ainda algo a ser expressado artisticamente além do niilismo e destruição (meu outro grande disco da época era White Lights/White Heat). Parecia que o sujeito que compôs Astral Weeks sofria de uma dor terrível, uma dor que os discos anteriores de Van Morrison haviam apenas sugerido; mas, como os últimos álbuns do Velvet Underground, havia um elemento redentor na escuridão reinante, uma compaixão suprema pelo sofrimento dos outros e um raio de pura beleza e estupefação mística envolvendo o coração da obra.
Muitas outras pessoas relataram opiniões parecidas com a que tive no meu primeiro encontro com esse disco, mas eu não sei dizer o quanto isso é significativo. Eu não acho que haja nele qualquer coisa que sirva de guia para pessoas padecendo de períodos de escuridão. Mas ele surgiu numa época em que uma porção de coisas às quais as pessoas davam muita importância, de maneira tão apaixonada, começava a desintegrar e quando a ressaca autodestrutiva que sempre acompanhara a grande festa dos anos 60 tomou conta dos ânimos e puxou tudo para baixo. Assim, por mais atemporal que seja,
Astral Weeks é talvez cria de uma era, também. Melhor pensar assim do que tentar entender que tipo de assombrações paroquiais irlandesas deu vida a Van Morrison.


Três programas de TV: uma exibição da NET de 1970 de um grande encontro de estrelas no (teatro) Fillmore East. The Byrds, Sha Na Na e Elvin Bishop já haviam terminado suas respectivas apresentações. Agora vêm três ou quatro canções da parte de Van Morrison. Ele chega ao clímax, como sempre fazia naquele tempo, com "Cyprus Avenue", de
Astral Weeks. Após recitar todos os versos, ele leva a canção, a banda e a si mesmo a um final que, desde então, tornou-se sua marca registrada e um dos encerramentos de show mais clássicos de toda a história do rock'n'roll. Com uma dinâmica perfeita que lhe permite pular, como se desse um bote, de um fraseado indescritível e excêntrico para a mais absoluta paixão no espaço de um respiro, ele vai levando a música crescendo em crescendo, parando e recomeçando, parando e recomeçando a canção, impondo longos silêncios maníacos como gigantescos pontos de interrogação entre as paradas e os recomeços, dominando a sala por meio de uma tensão absoluta que explode no berro de "It's too late to stop now!" (É tarde demais para parar agora!), e bem quando você acha que vem mais uma onda estourando lá de cima, ele corta o som de vez, o silêncio oco de uma explosão assassinada, joga o microfone no chão e sai furiosamente do palco. É com certeza uma das coisas mais perversas que eu já vi um artista fazendo em toda a minha vida. E, claro, é sensacional: deixa um nó nas nossas entranhas, estamos alucinados e babando por mais, mas sabemos muito bem que vimos e sentimos algo especial.
1974, um concerto de rock exibido no fim de noite de um canal de TV aberta: Van e sua banda entram em cena, tocam alguns acordes bruxuleantes, e por cerca de dez minutos ele se arrasta pelas palavras "Way over yonder in the clear blue sky / Where flamingos fly" (Longe lá longe no claro azul do céu / onde voam flamingos). E nada mais. Creio que nem mesmo uns solos instrumentais. Apenas essas palavras, repetidas vagarosamentes vez após vez, distendidas, permutadas, transformadas em
scat, suspensas no espaço e então espalhadas pelos ventos, murmuradas como um mantra até se transformarem em sílabas sem sentido. Ele fica ali parado com os olhos fechados, cantando, teletransportando, enquanto a banda paira trepidante sobre os seus próprios abismos profundos de afinação.
1977, primavera-verão, mesmo tipo de show: ele canta "Cold Wind In August", canção de seu álbum mais recente,
A Period of Transition, que também contém uma versão razoavelmente alterada da música dos flamingos. "Cold Wind In August" é uma balada, e Van lhe dá uma bela interpretação standard. O único problema é que, enquanto canta, ele fica andando pra frente e pra trás seguindo uma linha no palco, seus olhos completamente fechados, seu corpinho parecendo um hidrante avançando a patadas contra um aparente nervosismo purgatorial, que talvez estivesse sendo transferido para o cameraman.


Isso tudo quer dizer que estamos falando de todo um conjunto de tiques verbais - apesar de que muitos são físicos, também -, dos quais há motivo de sobra para nos estendermos numa definição do seu estilo. Eles estão ali, por todo o
Astral Weeks: quatro repetições apressadas das frases "you breath in, you breath out" (você inspira, você expira) e "you turn around" (você se vira) na faixa "Beside You"; em "Cyprus Avenue", 12 "way up on"s, "baby" cantado 13 vezes seguidas soando como alguém a correr em êxtase barranco abaixo em direção ao seu amor, e a maneira com que estica "one by one" no terceiro verso é de rachar o coração; mais que tudo em "Madame George", onde ele canta a palavra "dry" (seco) e depois "your eye" (teu olho) 20 vezes num torcido arco melódico que nos rouba o ar, e então acontece isso: "And the love thats loves the love that loves the love that loves the love that loves to love the love that loves to love the love tha loves".
Van Morrison está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue comprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, seja um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases a extremos que, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos. Algumas vezes ele nos dá isso com seus silêncios, extinguindo a canção no meio do vôo: "It's too late to stop now!".
É a grande busca, alimentada pela crença de que, por meio desses processos mentais e musicais, a iluminação é alcançável. Ou pelo menos pode ser vislumbrada.
Quando vai atrás disso, ele consegue muito mais no sentimento que na Palavra Revelada - talvez muito do sentimento venha do alcançar em si - mas há também, sempre, o sentido de E SE ele REALMENTE apreendeu aquela Palavra; por vezes a Palavra parece estar rondando muito perto. E então há situações em que nos damos conta de que a Palavra estava bem do nossa lado, quando as frases mais mundanas e superutilizadas são transformadas: pegue, por exemplo, o "love" de "Madame George". Para fora do silêncio relativo, a Palavra: "Snow in San Anselmo" (Neve em San Anselmo). "That's where it's at" (é lá mesmo que ela está), dirá Van, e ele quer dizer isso mesmo (suas entrevistas não são mesmo
fascinantes?). O que ele não diz é que ele está dentro do floco de neve, isolado pela canção: "And it's almost Independence Day" (e é quase o Dia da Independência).
Você está certamente se perguntando quando é que finalmente eu vou começar a falar a respeito de
Astral Weeks. Na verdade, tem um monte de coisas sobre Astral Weeks que eu nem quero te falar. Tanto porque, não importa se você já ouviu ou não, seria injusto que eu impusesse a minha interpretação de um imaginário de tamanha lapidaridade subjetiva, assim como porque, em muitos casos, eu não sei direito do que ele está falando. Ele também não: "Não fico surpreso se as pessoas tiram significados diferentes das minhas músicas", disse ele a um entrevistador da Rolling Stone. "Mas eu não quero passar a impressão de que sei o que tudo isso significa, porque eu também não sei... Tem vezes em que fico aturdido. Eu vejo algumas dessas coisas que saem, você sabe cumé... E, tipo assim, o negócio está aí e parece certo, mas eu não sei dizer direito o que significa".
There you go Starin' with a look of avarice Talkin' to Huddie Ledbetter Showin' pictures on the walls And whisperin' in the halls And pontin' a finger at me

Eu não tenho a menor idéia do que isso "significa", apesar de que gostaria de abordá-lo de uma maneira tão indireta e evocativa como as próprias letras. Porque a gente se encrenca ao tentar explicar o
significado de um documento místico, exatamente o caso de Astral Weeks. De toda forma, o que isso significa é o baixo de Richard Davis, que complementa as canções e os vocais até o fim com um lirismo que é algo mais que uma grande musicalidade: tem algo aí que é mais que inspirado, algo que foi tocado, ungido, que se encontra nos domínios do miraculoso. Todo o conjunto - as cordas de Larry Fallon, a guitarra de Jay Berliner (ele tocou em Black Saint and the Sinner Lady, de Charles Mingus), a bateria de Connie Kay - é desse jeito: Van e eles soam como se não estivessem apenas lendo, mas vivendo dentro das mentes uns dos outros. Os fatos podem ser bem diferentes. John Cale estava gravando um álbum solo num estúdio adjacente naquela época, e, segundo ele, "Morrison não conseguia trabalhar com ninguém, então simplesmente o trancaram sozinho no estúdio. Ele gravou todas as músicas apenas com um violão, e mais tarde mixaram o resto com suas fitas".
A história de Cale pode ser ou não real - mas, em todo caso, fatos não ajudam nada aqui. Fato: Van Morrison tinha 22 anos - ou 23 - quando fez esse disco; existem vidas inteiras atrás disso.
Astral Weeks trabalha não com fatos, mas com verdades. Astral Weeks, até onde pode ser definido, é um disco sobre pessoas aturdidas pela vida, completamente atordoadas, atoladas em seus corpos, suas idades e egos, paralisadas pela enormidade daquilo que, num vislumbre, elas conseguem compreender. É um dom tão precioso como terrível, nascido de uma verdade assustadora, porque o que eles vêem é infinitamente belo e mortalmente horripilante; a ilimitada habilidade humana para criar e destruir, de acordo com seus caprichos. Não se trata de mística oriental ou visão psicodélica para além da maionese, tampouco é alguma percepção baudelariana da beleza do nojo e do grotesco. Talvez seja, no fim das contas, a conscientização do milagre da vida condensado em um instante, com seu concomitante inevitável, o vislumbre vertiginoso da capacidade de se machucar e da capacidade de inflingir a dor.
Petrificado entre o êxtase e a angústia. Imaginando se ambos não poderiam ser a mesma coisa, ou pelo menos envoltos em uma relação íntima. Em
T.B. Sheets (lençóis de tuberculose), sua última narrativa mais extensa antes de gravar Astral Weeks, Van Morrison testemunhou quando a garota que ele amava morreu de tuberculose. A canção era claustrofóbica, sufocante, monstruosamente poderosa: "innuendos, inadequacies, foreign bodies" (alusões, inadequações, corpos estranhos). Um monte de gente não engoliu, o editor deste livro dizia que era lixo, mas acho que o disco na verdade o melindrou. Mesmo assim, o que interessa é que certas partes de Astral Weeks - "Madame George", "Cyprus Avenue" - pegam a dor de T.B. Sheets e enterram o mundo nela. Porque a dor de assitir a uma pessoa querida morrer de qualquer doença horrorosa pode ser insuportável, mas pelo menos é algo sabido, de certa maneira entendido, de certa maneira mensurável e que até mesmo leva a algum outro lugar, porque existe um processo: moléstia, deterioração, morte, luto, alguma recuperação emocional. Mas o lindo horror de "Madame George" e "Cyprus Avenue" é precisamente que as pessoas nessas músicas não estão morrendo: estamos vendo a vida em seu primor, e essas pessoas não estão sofrendo de doença, estão sofrendo da natureza - a não ser que a natureza seja uma doença.
Um sujeito está sentado num carro numa rua arborizada, olhando uma garota de 14 anos voltando a pé da escola, desesperadamente apaixonado. Quase saí na porrada com alguns amigos por causa da minha insistência de que boa parte dos primeiros trabalhos de Van Morrison tinham um fixação obsessivamente reiterada com pedofilia, e aqui temos algo que deve ser entendido imediatamente como isso mesmo, mas também como algo muito além. Ele a
ama. Por causa disso, ele está perdido, impotente. Tremento. Paralisado. Enlouquecido. Desesperançado. A natureza está zoando ele. Como só a natureza consegue zoar da natureza. Mas seria, antes de tudo, o amor natural? Não interessa. Lá pelo fim da música ele já havia entrado numa espécie de êxtase alucinatório; a música geme de dor e suspira de desejo enquanto se desenrola. Essa é uma dor suprema, a de estar preso ao corpo de um espectador. E talvez não esteja tão longe de T.B. Sheets, exceto pelo fato de que deve ser muito mais fácil romanticamente sentar e assistir a alguém que você ama morrendo do que vê-la na flor da juventude e saúde e saber que você nunca, jamais poderá tê-la, sequer mesmo falar com ela.
"Madame George" é o redemoinho do álbum. Possivelmente uma das mais compassivas obras musicais já feitas, ela nos pergunta, ou melhor, ela monta a cena para que assistamos ao calvário de um - serei brutal - travesti abandonado com uma empatia tão intensa que, quando o cantor o machuca, nós também o fazemos. (Morrison disse em pelo menos uma entrevista que a canção não tinha a ver com nenhuma espécie de transexual - até onde
ele saiba, ele é rápido em emendar - mas tudo isso é besteira). A beleza, a sensibilidade, santidade da música é que não há nada de sensacionalismo, de exploração, nada de trejeitos; de certa forma Van está certo quando insiste que não se trata de uma drag queen, assim como meus amigos estavam certos e eu errado sobre a questão da "pedofilia" - trata-se de uma pessoa, como nas melhores músicas e na grande literatura.
O cenário é o mesmo da canção anterior - Cyprus Avenue, aparentemente um lugar onde as pessoas vagam, impelidas pelo desejo, em direção a instantes de auto-destruição, confrontos de gelar o sangue com seus próprios destinos. É um lugar elementar de julgamentos impiedosos - vento e chuva figuram nas duas músicas - e, o que é bastante interessante, é um lugar onde esses julgamentos se tornam ainda mais cruéis por serem feitos por
crianças sobre os adultos, em ambos os casos tratam-se de objetos de amor absolutamente indiferentes aos seus futuros amantes. Os garotinhos de "Madame George" são de uma insolência patente - como os pirralhos de rua que acabam canibalizando o primo homossexual em De Repente no Último Verão, de Tennessee William, eles ficam mais que felizes em chegar junto enquanto rola música, festa, bebida de graça e do que fumar, e mais eufóricos ainda cospem nos xodós de George quando todo o resto acaba, o inverno tal qual coveiro se instalando com não apenas vento e chuva, mas também granizo, geade e neve.
O que poderia parecer mais estranho, mas que não parece, é que justamente aquelas características que supostamente deveriam tornar George o mais patético - idade, bebedeira, a maneira com que os garotos pegam seu dinheiro e detonam o seu amor - é o que acaba despertando algo por George no coração do menino que fez a canção. É óbvio que o menino não se "apaixonou pelo amor", ou algo parecido, mas sim - o quê? Oras, só estando afundado nas perversões mais tépidas um ser humano poderia amar um outro por qualquer coisa que não a sua humanidade: amá-lo por suas fraquezas, seus defeitos, e por fim, talvez sua deterioração. A ruína é humana - essa é uma das principais mensagens aqui, e eu não quero, por nenhuma extensão léxica, dizer decadência. O que eu quero dizer é que nessa música, ou em seja lá o que a tenha inspirado, Van Morrison viu a possibilidade absoluta de amar seres humanos no extremo mais longíquo da miséria e que as implicações disso são de fato terríveis, muito mais terríveis que a mera visão de corpos enfeiados pela idade ou o aparente absurdo de um homem devotando sua vida ao artifício vacilante de tentar se parecer com uma mulher.
Você pode dizer ao amor as perguntas que você tem para amar as respostas que aceleram o fim do amor que é amado para amar a terrível desigualdade da experiência humana que ama dizer que estamos por cima disso tudo que perdeu aquele amor para amar o amor que a liberdade poderia ter sido, o trem para a liberdade, mas nós acabamos nunca embarcando, preferimos vagar generosamente fugindo daqueles que são vítimas de si mesmos. Mas quem pode dizer que alguém que se vitimiza não tem o direito àquela compaixão absoluta provocada pelo mais miserável órfãozinho do Terceiro Mundo num anúncio em uma revista do tipo
The New Yorker? Bah, melhro passar por cima dos corpos, ao menos isso lhes dá o respeito que um dia eles teriam merecido. Onde eu vivo, em Nova York (sem querer fazer disso mais do que é, o que é difícil), todo mundo que eu conheço costuma passar por cima de corpos que bem poderiam estar mortos ou então morrendo, sem dor. E eu me pergunto com qual lógica foi originalmente concebida a idéia de que tal ação significa demonstrar aos refugos humanos o respeito supremo que eles merecem.
Há, claro, um raciocínio - que mais resta fazer? - mas isso só serve para segurar o medo do nosso próprio abandono face à vida plana como ela é: uma planície que se estende ao infinito além dos horizontes que nós, apenas nós, inventamos. Vamos lá, morra disso. Enquanto escrevo isto aqui, leio no Village Voice as diatribes de uns fulanos abrindo clubes de sadomasoquismo heterossexual em Manhattan, dizendo coisas do gênero "S&M é apenas uma outra forma igualmente válidade de amor. Por que as pessoas não podem aceitar isso, nunca saberemos". Dá mais vontade de pular da janela do quinto andar do que apenas ler o resto do artigo, mas dificilmente é o fim do mundo; não chega nem perto das feridas que se abrem todos os dis em todos os lugares e que são levadas de maneira tão casual por todos nós, como simples fatos da vida. Talvez seja uma questão de quanto você realmente quer se sujeitar. Se você aceita, por um momento que seja, a idéia de que cada vida humana é tão preciosa e delicada como um floco de neve e aí encara um bebum na saída de um bar, você vai ter que penar e se transformar em uma esponjua que suga os problemas de todos os outros babacas até se sentir você mesmo um grnade babaca, e assim estabelecer os limites apropriados. Você pára de sentir. Mas sabe que é aí que começa a morrer. Então você briga consigo mesmo. Quanto deste horror eu consigo realmente me permitir pensa a respeito? Talvez a mais muda manequim de vitrine seja mais sábia que alguém que só permite que sua sensibilidade o leve a destruir tudo aquilo que toca - mas novamente, lembrando "Madame George", só o fato de reconhecer que aquela pessoa existe, só em tocar a sua bochecha e então querer morrer por se dar conta do fardo supremo que é ser obrigado a partilhar deste mundo com ela não é mais que o primeiro passo. A consciência de estar vivo tem justamente a ver com essa depressão e a exaltação e o insuportável e o tão-almejado. Por favor, volte e me deixe em paz sozinho. Porém quando estamos solitários, mas acompanhados, podemos falar o quanto for sobre a universalidade desse abismo: não faz a mínima diferença, o superior só vai ao encontro do inferior por socorro, UNICEF para os parentes, e aí você coça e cospe em violenta resignação ao fato consumado de não haver absolutamente nada que você possa fazer a não ser rejeitar finalmente qualquer um que sofra mais do que você. Numa hora dessas, oferecer um novo respiro é traição. Taí por que você deixa de lado suas causas liberais, larga a humanidade sofredora a morrer em condições ainda piores das de antes de você aparecer em suas vidas. Você despertou as esperanças deles. O que lhe faz ainda mais vil que a imundície mais escrofulosa. Mais pérfido que os garotos ignorantes que comeriam Madame George por meia dúzia de cigarros. Porque você cometeu o crime do conhecimento e, assim, não apenas passou de lado ou por cima de alguém que você sabia estar sofrendo, mas também violou a sua privacidade, a última posse dos despossuídos.
Tal conhecimento é possivelmente a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa (uma pessoa de sorte), assim não é de espantar que o protagonista de Morrison tenha dado as costas à Madame George, fugido para a estação de trem, tentando correr o mais longe possível do que ele viu como uma vida inteira prestes a pegá-lo de jeito. E não é de espantar também que Van Morrison nunca mais conseguiu chegar tão perto de ver a vida cara-a-cara, não é de espantar que ele se voltou para Tupelo Honey ou mesmo Hard Nose the Highway, com seu lado inteiro só de canções sobre folhas cainda das árvores. Em Astral Weeks e T.B. Sheets ele se confrontou com o suficiente para preencher uma vida inteira. É claro que, por haver recebido esse presente desmedidamente tocante e igualmente assustador de Morrison, não se pode culpar ninguém por não dar muita bola para "Old, Old Woodstock" ou pequenas homílias como "You've Got to Make It Through This World on Your Own" e "Take It Where You Find It".
Por outro lado, deveríamos também lembrar que desolação, mágoa e angústia dificilmente são as únicas coisas na vida, ou em Astral Weeks. Elas são apenas as coisas que, talvez, nós possamos agarrar e explicar mais facilmente, o que, suponho, diz muito sobre o quanto as nossas almas evoluíram. Eu disse que não iria reduzir as outras canções deste álbum tentando explicá-las, e não vou mesmo. Mas isso não quer dizer que, levando tudo em conta, uma justaposição de poeta não cairia bem.

If I ventured in the slipstream
Between the viaducts of your dreams
Where the mobile steel rims crack
And the ditch and the backroads stop
Could you find me
Would you kiss my eyes
And lay me down
In silence easy
To be born again?

Van Morrison

Meu coração de seda
Está cheio de luzes,
Com sinos perdidos,
Com lírios e abelhas.
Irei bem longe,
Mais longe que aquelas colinas,
Mais longe que os mares,
Para perto das estrelas,
Para pedir ao Cristo nosso Senhor
Que me devolva a alma que tinha
Antigamente, quando era criança,
Amadurecida com lendas,
Com um boné emplumado
E uma espada de madeira.

Federico García Lorca

Lester Bangs
STRANDED, 1979


BANGS, Lester. Reações Psicóticas. São Paulo: CONRAD Editora do Brasil, 2005, p.21-39.

domingo, 30 de janeiro de 2011

George Orwell. 1984

Como saber quais daquelas coisas eram mentiras? Talvez fosse verdade que as condições de vida do ser humano médio fossem melhores hoje do que eram antes da Revolução. Os únicos indícios em contrário eram o protesto mudo que você sentia nos ossos, a percepção instintiva de que suas condições de vida eram intoleráveis e de que era impossível que em outros tempos elas não tivessem sido diferentes. Pensou que as únicas características indiscutíveis da vida moderna não eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida - era só olhar entorno para constatar - não tinha nada a ver com as mentiras que manavam das teletelas, tampouco com os ideais que o Partido tentava atingir. Porções consideráveis dela, mesmo da vida de um membro do Partido, eram neutras e apolíticas, simplesmente questão de suar a camisa realizando trabalhos horrorosos, de lutar para conseguir um lugar no metrô, de cerzir uma meia velha, de arrumar um saquinho de sacarina, de economizar uma bagana. O ideal definido pelo Partido era uma coisa imensa, terrível e luminosa - um mundo de aço e concreto cheio de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes -, uma nação de guerreiros e fanáticos avançando em perfeita sincronia, todos pensando os mesmos pensamentos e bradando os mesmos slogans, perpetuamente trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo - trezentos milhões de pessoas de rostos iguais. A realidade eram cidades precárias se decompondo, nas quais pessoas subalimentadas se arrastavam de um lado para o outro em seus sapatos furados no interior de casas do século XIX com reformas improvisadas, sempre cheirando a repolho e a banheiros degradados. Winston tinha a sensação de ter uma visão de Londres, , imensa e semidestruída, cidade com um milhão de latas de lixo, e fundida a essa visão estava a imagem da sra. Parsons, aquela mulher com vincos no rosto e cabelo espigado, lidando desamparada com um encanamento entupido.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.93.

André Dahmer. Alguma poesia

salva-mar

canta palavrões lindos
senta de cócoras
sobre minha
rígida
aorta

logo você
belo bípede
trepando como
um quadrúpede

e eu

mesmo em pé sonho
como dois em cada dois
mortais

que possuo
um amor
que me possui

vinho novo

se faltar
carinho
ninho

se sobrar
insônia
sonha

se faltar
a paz



minas gerais


trecho de quando um valente valete abandona seu rei

o mundo que amolecer cacetes
o mundo quer endurecer corações

o bar fechou

controladamente
sinto raiva de tudo

um carro passa
e alguém me xinga

sento no chão e repito baixinho o nome dos meus mortos
balanço o corpo com aquele meu jeitão de viciado

rezo para a padaria abrir

abro a carteira para beijar sua foto
gasto o resto do meu tempo pensando
no quanto fomos infelizes

tenho dois cigarros
um cartão de débito
e algumas dívidas afetivas

DAHMER, André. Ninguém muda ninguém. Rio de Janeiro: Flâneur, 2010, pp. 34, 81 , 120, 130.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Charles Bukowski

esta noite

"seus poemas sobre as garotas ainda estarão por aí
daqui a 50 anos quando as garotas já tiverem ido",
meu editor me telefona.

caro editor:
parece que as garotas já se
foram.

entendo o que o senhor diz

mas me dê uma mulher verdadeiramente viva
nesta noite
cruzando o piso em minha direção

e o senhor pode ficar com todos os poemas

os bons
os maus
ou qualquer outro que eu venha a escrever
depois deste.

entendo o que o senhor diz.

O senhor entende o que eu digo?

BUKOWSKI, Charles. O amor é um cão dos diabos. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.36.

sábado, 8 de janeiro de 2011

John Fante. 1933 FOI UM ANO RUIM

Permaneci deitado na noite branca vendo o mau hálito escapar em pequenas nuvens. Sonhadores, éramos uma casa repleta de sonhadores. A vovó sonhava com sua casa na distante Abruzzi. O meu pai sonhava em ver-se livre das dívidas e empilhando tijolos lado a lado com seu filho. A minha mãe sonhava com a divina recompensa de um marido que não se ausentava de casa. Minha irmã Clara sonhava em tornar-se uma freira e o meu irmãozinho Frederick mal podia esperar para crescer e tornar-se um cowboy. Fechando os olhos eu pude ouvir o zumbido dos sonhos pela casa e então adormeci.

FANTE, John. 1933 foi um ano ruim. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p.33.


*

Seus olhos saltaram de espanto. Eu o soltei e ele se virou e entrou no ônibus. Eu me afastei, cuspindo o gosto de óleo enquanto ele desaparecia na nevasca. Meti as mãos nos bolsos e comecei a subir a Pearl Street, afundado os pés a caminho de casa, debaixo daquela tempestade sem sentido. Mas a neve tinha suas vantagens, afinal. Ela nos escondia dos outros, escondia nossas sardas e orelhas de abano e a estatura ridícula, enquanto passamos pelos outros fantasmas daquela desolação, cabeças pendidas, olhos abaixados, nossa culpa e inutilidade bem protegidos lá dentro.

FANTE, John. 1933 foi um ano ruim. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p.61.