sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Kenzaburo Oe. JOVENS DE UM NOVO TEMPO, DESPERTAI! (1983)


De fato eu apreciava bastante esse desenho. A figura tinha sido impressa originariamente na capa de uma coletânea de ensaios do dr. W, "Sobre a loucura e outros assuntos" [Kyoki ni tsuite nado], publicada logo após a guerra. Segundo me lembro, eu havia mandado emoldurá-la e a pusera em meu gabinete porque fora profundamente influenciado pelo seguinte trecho desse livro: "Grandes obras inexistiriam sem loucura, dizem alguns. É mentira. Obras realizadas com loucura vêm sempre acompanhadas de devastação e sacríficio. Obras verdadeiramente grandiosas são realizadas de maneira honesta, persistente e firme por indivíduos humanos com a acentuada consciência da própria suscetibilidade à loucura?"

OE, Kenzaburo. Jovens de um novo tempo, despertai! (tradução de Leiko Gotoda). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.79-80.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Charles Bukowski. MISTO QUENTE


O problema era que você precisava ficar constantemente escolhendo entre uma opção horrível e outra pavorosa, e, independente da sua escolha, eles cortavam mais um pedaço da sua carne, até que não restasse mais nada para descarnar. Por volta dos 25 anos, a maioria das pessoas estava liquidada. Uma maldita nação inteira de desgraçados dirigindo carros, comendo, tendo bebês, fazendo todas as coisas da pior maneira possível, como votar em candidatos à presidência que os fizessem lembrar a si mesmos.

Eu não tinha interesse. Eu não tinha interesse por nada. Não fazia a mínina ideia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela vida. Pareciam entender algo que me era inacessível. Talvez eu fosse retardado. Era possível. Frequentemente me sentia inferior. Queria apenas encontrar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. Suicídio? Jesus Cristo, apenas mais trabalho. Sentia que o ideal era poder dormir por uns cinco anos, mas isso eles não permitiriam.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.191-192.
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Podia ver a estrada à minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria algum lugar para me esconder, um lugar em que ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava mas também me deixava enojado. Pensar em ser um advogado ou um professor ou um engenheiro, qualquer coisa desse tipo, parecia-me impossível. Casar, ter filhos, ficar preso a uma estrutura familiar. Ir e retornar de um local de trabalho todos os dias. Era impossível. Fazer coisas, coisas simples, participar de piqueniques em família, festas de Natal, 4 de julho, Dia do Trabalho, Dia das Mães... afinal, é para isso que nasce um homem, para enfrentar essas coisas até o dia de sua morte? Preferia ser um lavador de pratos, retornar para a solidão de um cubículo e beber até dormir.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.212.
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E minhas questões pessoais continuavam tão más e lamentáveis quanto no dia em que nasci. A única diferença era que agora eu podia beber de vez em quando, embora nunca o suficiente. A bebida era a única coisa que impedia um homem de se sentir para sempre atordoado e inútil. Todo o resto ia furando e furando sua carne, arrancando seu pedaços. E nada tinha o menor interesse, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas, todas iguais. E eu teria que viver com esses fodidos pelo resto da minha vida, pensei. Deus, todos eles tinham cus e órgãos sexuais e bocas e sovacos. Cagavam e tagarelavam, e todos eram tão inertes quanto esterco de cavalo. As garotas pareciam legais a certa distância, o sol resplandecendo em seus vestidos, em seus cabelos. Mas vá se aproximar e ouvir seus pensamentos escorrendo boca afora, você vai sentir vontade de cavar um buraco ao sopé de uma colina e se entrincheirar com uma metralhadora. Eu certamente nunca conseguiria ser feliz, me casar, nunca teria filhos. Inferno, eu nem mesmo conseguia um emprego de lavador de prato.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.270.
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A vida das pessoas sãs, dos homens comuns, era uma estupidez pior do que a morte. Parecia não haver alternativa possível. A educação também parecia uma armadilha. A pouca educação que eu tinha me permitido havia me tornado ainda mais desconfiado. O que eram médicos, advogados, cientistas? Apenas homens que tinham permitido que sua liberdade de pensamento e a capacidade de agir como indivíduos lhes fosse retirada. Voltei para meu barracão e enchi a cara...

Sentado ali, bebendo, considerei a opção do suicídio, mas me senti estranhamente apaixonado pelo meu corpo, pela minha vida. Apesar das cicatrizes que marcavam meu corpo e minha existência, ambos eram propriedades minhas. Eu podia me levantar agora e sorrir com escárnio para meu reflexo no espelho da cômoda: se você tem que ir, que leve ao menos uns oito juntos, uns dez, uns vinte...
Era uma noite de dezembro, um sábado. Estava no meu quarto e tinha bebido muito mais do que o de costume, acendendo um cigarro no outro, pensando nas garotas e na cidade e nos empregos e nos anos que ainda viriam. Olhando para o devir, eu gostava muito pouco do que via. Eu não era um misantropo ou um misógino, mas gostava de estar sozinho. Era bom estar solitário num lugarzinho, sentado, fumando e bebendo. Sempre tinha sido uma boa companhia para mim mesmo.

BUKOWSKI, Charles. Misto quente. (tradução Pedro Gonzaga). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.305.