sábado, 24 de outubro de 2020

Audre Lorde. A POETA COMO PROFESSORA - A HUMANA COMO POETA - A PROFESSORA COMO HUMANA


Toda vez que falo sobre esse tema fico dividida entre dizer: tudo bem, é assim que dou essa aula específica em determinado dia, estava chovendo, a aula  funcionou/não funcionou... Em contrapartida, para lidar com o que considero ser mais fundamental do que qualquer técnica - porque a técnica varia conforme múltiplos fatores -, o exercício que escolho para um dia chuvoso com o mesmo grupo é diferente do que o que eu escolheria se fosse um dia bonito, ou no dia seguinte ao assassinato de uma criança negra por um policial, pois, não se enganem, esses climas emocionais são minuciosamente absorvidos e metabolizados pelas crianças. Então, mais do que uma técnica, acredito ser fundamental a minha percepção  como um todo. A poeta como professora, a humana como poeta, a professora como humana. Elas me parecem a mesma.
Um escritor é, por definição, um professor. Ainda que eu nunca mais venha a dar outra aula, cada poema que escrevi é um esforço de compor um fragmento de verdade baseado em imagens da minha experiência e compartilhá-lo com o maior número de pessoas que possam me ouvir hoje ou no futuro. Dessa forma, todo poema que escrevo é, além de tudo, uma ferramenta de aprendizagem. Existe algo a ser aprendido ao compartilhar um sentimento verdadeiro entre duas ou mais pessoas; comunicar é ensinar - tocar - realmente tocar outro ser humano é ensinar - escrever poemas de verdade é ensinar - cavar boas trincheiras é ensinar - viver é ensinar. Sinto que o único estado humano em que não se ensina é no sono, e essa é uma propriedade que o ato de dormir tem em comum com a morte.
Sou um ser humano. Sou uma mulher negra, uma poeta, mãe, amante, professora, amiga, gorda, tímida, generosa, leal, irritável. Se eu não trouxer tudo o que sou ao que estiver fazendo, então não trago nada, ou nada de valor duradouro, pois omiti minha essência. Se não trago tudo o que sou para vocês, aqui, esta noite, falando sobre o que sinto, sobre o que sei, então cometo uma injustiça. O que puderem usar, levem como vocês; o que não puderem, deixem pra lá. (...).

LORDE, Audre. "A poeta como professora - a humana como poeta - a professora como humana" In: Sou sua irmã. São Paulo: Ubu Editora, 2020, pp.103-104.

Obs.: Manuscrito original sem data, publicado pela primeira vez em inglês em 2009.