sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Macedonio Fernández. MUSEU DO ROMANCE DA ETERNA (1967)

5. Prólogo à eternidade Tudo foi escrito, tudo foi dito, tudo foi feito, Deus ouviu que lhe diziam e ainda não havia criado o mundo, então não havia nada. Isso também já me disseram, replicou talvez do velho e rachado Nada. E começou. Uma romena cantou um trecho de música do povo e depois encontrei dez vezes o trecho em diferentes obras e autores dos últimos quatrocentos anos. É indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo.

FERNÁNDEZ, Macedonio. Museu do romance da eterna. São Paulo: Cosac Naify, 2010.


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

D.H. Lawrence. CAOS EM POESIA (1929)

A qualidade essencial da poesia é que ela faz um novo esforço de atenção e "descobre" um novo mundo  conhecido. O homem, e os animais, e as flores, todos vivem dentro de um estranho e para sempre emergente caos. Chamamos de cosmos o caos com que nos acostumamos. Ao inefável caos interior de que somos constituídos chamamos consciência, e mente, e até civilização. Mas ele é, no fim das contas, caos, iluminado por visões ou não. Da mesma forma como o arco-íris pode ou não iluminar a tempestade. E, como o arco-íris, a visão perece.
Mas o homem não pode viver no caos. Os animais podem. Para o animal, tudo é caos, há somente alguns poucos aspectos e movimentos recorrentes dentro de ondulações vibratórias. E o animal está contente. Mas o homem, não. O homem precisa embrulhar a si numa visão, fazer uma casa com uma forma visível e com estabilidade, com fixidez.
Em seu terror pelo caos, o  homem começa armando um guarda-sol entre ele próprio e aquele vórtice intenso na sua duração sem fim. Então ele colore o lado interno de seu guarda-sol, imitando o firmamento. Então ele desfila por aí, vive e morre debaixo de seu guarda-sol. Legado a seus descendentes, o guarda-sol torna-se uma cúpulacapela, uma casaforte, uma câmara mortuária, e os homens começam a sentir, finalmente, que alguma coisa está errada.
O homem constrói um edíficio assombroso a partir de si, erguido entre ele mesmo e o caos selvagem, tornando-se, gradualmente, empalidecido e asfixiado sob o tecido do seu guarda-sol. Então vem um poeta, o inimigo das convenções. e faz um rasgão no guarda-sol; e vejam! o lampejo de caos é agora uma visão, uma janela para o sol. Em breve, porém, por ser acostumar à visão, e por não suportar aquela dose de caos, o homem-lugar-comum ponta um simulacro, uma cópia grosseira da janela que se abre para o caos, e reveste o guarda-sol com os pedaços pintados de simulacro.
(...)
E quanto aos poetas neste nó? Eles revelam o desejo interno da humanidade. O que revelam? Eles mostram o desejo por caos e, ao mesmo tempo, o medo do caos. O desejo pelo caos é a respiração de sua poesia. O medo do caos está no desfile de formas e técnicas. Poesia, dizem, é feita de palavras.
Então, sopram-se bolhas de som e imagem, que, em seguida, irão estourar com a respiração que anela pelo exato caos que as preenche.  Os poetastros podem fazer bolinhas bonitas e brilhantes para a árvore de natal, as quais nunca se rompem, porque não há sopro dentro delas: elas permanecem até o momento em que as deixamos cair.

LAWRENCE, D. H. Caos em poesia. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Bárbarie, 2016, sem paginação.