sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Charles Bukowski. PULP


Esperamos e esperamos. Todos nós. Não saberia o analista que a espera é uma das coisas que faziam as pessoas ficarem loucas? Esperavam para viver, esperavam para morrer. Esperavam para comprar papel higiênico. Esperavam na fila para pegar dinheiro. E, se não tinham dinheiro, precisam esperar em filas mais longas. A gente tinha de esperar para dormir e esperar para acordar. Tinha de esperar para se casar e para se divorciar. Esperar pela chuva e esperar pelo sol. Esperar para comer e esperar para comer de novo. A gente tinha de esperar na sala de espera do analista com um monte de doidos, e começava a pensar se não estava ficando doido também.

BUKOWSKI, Charles. Pulp. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p.86.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Natalia Ginzburg. LÉXICO FAMILIAR

Advertência

Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada: e toda vez que, nas pegadas do meu velho costume de romancista, inventava, logo me sentia impelida a destruir tudo o que inventara.
Os nomes também são reais. Ao sentir, escrevendo este livro, uma intolerância tão profunda pra com qualquer invenção, não pude mudar os nomes verdadeiros, que me pareceram indissolúveis das pessoas verdadeiras. Pode ser que desagrade a alguém encontrar-se deste modo, com seu nome e sobrenome, num livro. Mas quanto a isso não tenho nada a responder.
Escrevi apenas aquilo de que me lembrava. Por isso, se este livro for lido como uma crônica, será possível, objetar que apresenta infinitas lacunas. Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como se fosse um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer.
E nele há também muitas coisas que eu lembrava e que deixei de escrever, e dentre essas, muitas que diziam respeito diretamente à minha pessoa.
Não sentia muita vontade de falar de mim. De fato, esta não é a minha história, mas antes, mesmo com vazios e lacunas, a história de minha família. Devo acrescentar que, no decorrer de minha infância e adolescência, propunha-me sempre a escrever um livro que contasse sobre as pessoas que viviam, então, ao meu redor. Este, em parte, é aquele livro: mas só em parte, porque a memória é lábil, e porque os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos.

GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p.9-10.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Lester Bangs. ASTRAL WEEKS



No momento em que este texto é escrito, contam-se exatamente 10 anos, quase dia por dia, desde que
Astral Weeks, de Van Morrison, foi lançado. Foi especialmente importante para mim porque o outono de 1968 tinha sido uma época terrível: eu era então um farrapo físico e mental, nervos dilacerados, fantasmas pairando e aranhas invadindo a cabeça. Meus contatos sociais se reduziram a praticamente nenhum; a presença de outras pessoas me deixava nervoso e paranóico. Passava dias e noites intermináveis afundado em uma poltrona no quarto, lendo revistas, vendo TV, ouvindo discos, olhando o teto. Não tinha qualquer idéia de como melhorar a situação e provavelmente não teria feito nada a respeito mesmo que soubesse.
Astral Weeks seria o assunto deste artigo - ou seja, o disco de rock mais importante na minha vida até hoje - não importava como eu estivesse me sentindo quando ele saísse. Mas, na condição em que eu me encontrava, ele assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia ainda algo a ser expressado artisticamente além do niilismo e destruição (meu outro grande disco da época era White Lights/White Heat). Parecia que o sujeito que compôs Astral Weeks sofria de uma dor terrível, uma dor que os discos anteriores de Van Morrison haviam apenas sugerido; mas, como os últimos álbuns do Velvet Underground, havia um elemento redentor na escuridão reinante, uma compaixão suprema pelo sofrimento dos outros e um raio de pura beleza e estupefação mística envolvendo o coração da obra.
Muitas outras pessoas relataram opiniões parecidas com a que tive no meu primeiro encontro com esse disco, mas eu não sei dizer o quanto isso é significativo. Eu não acho que haja nele qualquer coisa que sirva de guia para pessoas padecendo de períodos de escuridão. Mas ele surgiu numa época em que uma porção de coisas às quais as pessoas davam muita importância, de maneira tão apaixonada, começava a desintegrar e quando a ressaca autodestrutiva que sempre acompanhara a grande festa dos anos 60 tomou conta dos ânimos e puxou tudo para baixo. Assim, por mais atemporal que seja,
Astral Weeks é talvez cria de uma era, também. Melhor pensar assim do que tentar entender que tipo de assombrações paroquiais irlandesas deu vida a Van Morrison.


Três programas de TV: uma exibição da NET de 1970 de um grande encontro de estrelas no (teatro) Fillmore East. The Byrds, Sha Na Na e Elvin Bishop já haviam terminado suas respectivas apresentações. Agora vêm três ou quatro canções da parte de Van Morrison. Ele chega ao clímax, como sempre fazia naquele tempo, com "Cyprus Avenue", de
Astral Weeks. Após recitar todos os versos, ele leva a canção, a banda e a si mesmo a um final que, desde então, tornou-se sua marca registrada e um dos encerramentos de show mais clássicos de toda a história do rock'n'roll. Com uma dinâmica perfeita que lhe permite pular, como se desse um bote, de um fraseado indescritível e excêntrico para a mais absoluta paixão no espaço de um respiro, ele vai levando a música crescendo em crescendo, parando e recomeçando, parando e recomeçando a canção, impondo longos silêncios maníacos como gigantescos pontos de interrogação entre as paradas e os recomeços, dominando a sala por meio de uma tensão absoluta que explode no berro de "It's too late to stop now!" (É tarde demais para parar agora!), e bem quando você acha que vem mais uma onda estourando lá de cima, ele corta o som de vez, o silêncio oco de uma explosão assassinada, joga o microfone no chão e sai furiosamente do palco. É com certeza uma das coisas mais perversas que eu já vi um artista fazendo em toda a minha vida. E, claro, é sensacional: deixa um nó nas nossas entranhas, estamos alucinados e babando por mais, mas sabemos muito bem que vimos e sentimos algo especial.
1974, um concerto de rock exibido no fim de noite de um canal de TV aberta: Van e sua banda entram em cena, tocam alguns acordes bruxuleantes, e por cerca de dez minutos ele se arrasta pelas palavras "Way over yonder in the clear blue sky / Where flamingos fly" (Longe lá longe no claro azul do céu / onde voam flamingos). E nada mais. Creio que nem mesmo uns solos instrumentais. Apenas essas palavras, repetidas vagarosamentes vez após vez, distendidas, permutadas, transformadas em
scat, suspensas no espaço e então espalhadas pelos ventos, murmuradas como um mantra até se transformarem em sílabas sem sentido. Ele fica ali parado com os olhos fechados, cantando, teletransportando, enquanto a banda paira trepidante sobre os seus próprios abismos profundos de afinação.
1977, primavera-verão, mesmo tipo de show: ele canta "Cold Wind In August", canção de seu álbum mais recente,
A Period of Transition, que também contém uma versão razoavelmente alterada da música dos flamingos. "Cold Wind In August" é uma balada, e Van lhe dá uma bela interpretação standard. O único problema é que, enquanto canta, ele fica andando pra frente e pra trás seguindo uma linha no palco, seus olhos completamente fechados, seu corpinho parecendo um hidrante avançando a patadas contra um aparente nervosismo purgatorial, que talvez estivesse sendo transferido para o cameraman.


Isso tudo quer dizer que estamos falando de todo um conjunto de tiques verbais - apesar de que muitos são físicos, também -, dos quais há motivo de sobra para nos estendermos numa definição do seu estilo. Eles estão ali, por todo o
Astral Weeks: quatro repetições apressadas das frases "you breath in, you breath out" (você inspira, você expira) e "you turn around" (você se vira) na faixa "Beside You"; em "Cyprus Avenue", 12 "way up on"s, "baby" cantado 13 vezes seguidas soando como alguém a correr em êxtase barranco abaixo em direção ao seu amor, e a maneira com que estica "one by one" no terceiro verso é de rachar o coração; mais que tudo em "Madame George", onde ele canta a palavra "dry" (seco) e depois "your eye" (teu olho) 20 vezes num torcido arco melódico que nos rouba o ar, e então acontece isso: "And the love thats loves the love that loves the love that loves the love that loves to love the love that loves to love the love tha loves".
Van Morrison está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue comprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, seja um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases a extremos que, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos. Algumas vezes ele nos dá isso com seus silêncios, extinguindo a canção no meio do vôo: "It's too late to stop now!".
É a grande busca, alimentada pela crença de que, por meio desses processos mentais e musicais, a iluminação é alcançável. Ou pelo menos pode ser vislumbrada.
Quando vai atrás disso, ele consegue muito mais no sentimento que na Palavra Revelada - talvez muito do sentimento venha do alcançar em si - mas há também, sempre, o sentido de E SE ele REALMENTE apreendeu aquela Palavra; por vezes a Palavra parece estar rondando muito perto. E então há situações em que nos damos conta de que a Palavra estava bem do nossa lado, quando as frases mais mundanas e superutilizadas são transformadas: pegue, por exemplo, o "love" de "Madame George". Para fora do silêncio relativo, a Palavra: "Snow in San Anselmo" (Neve em San Anselmo). "That's where it's at" (é lá mesmo que ela está), dirá Van, e ele quer dizer isso mesmo (suas entrevistas não são mesmo
fascinantes?). O que ele não diz é que ele está dentro do floco de neve, isolado pela canção: "And it's almost Independence Day" (e é quase o Dia da Independência).
Você está certamente se perguntando quando é que finalmente eu vou começar a falar a respeito de
Astral Weeks. Na verdade, tem um monte de coisas sobre Astral Weeks que eu nem quero te falar. Tanto porque, não importa se você já ouviu ou não, seria injusto que eu impusesse a minha interpretação de um imaginário de tamanha lapidaridade subjetiva, assim como porque, em muitos casos, eu não sei direito do que ele está falando. Ele também não: "Não fico surpreso se as pessoas tiram significados diferentes das minhas músicas", disse ele a um entrevistador da Rolling Stone. "Mas eu não quero passar a impressão de que sei o que tudo isso significa, porque eu também não sei... Tem vezes em que fico aturdido. Eu vejo algumas dessas coisas que saem, você sabe cumé... E, tipo assim, o negócio está aí e parece certo, mas eu não sei dizer direito o que significa".
There you go Starin' with a look of avarice Talkin' to Huddie Ledbetter Showin' pictures on the walls And whisperin' in the halls And pontin' a finger at me

Eu não tenho a menor idéia do que isso "significa", apesar de que gostaria de abordá-lo de uma maneira tão indireta e evocativa como as próprias letras. Porque a gente se encrenca ao tentar explicar o
significado de um documento místico, exatamente o caso de Astral Weeks. De toda forma, o que isso significa é o baixo de Richard Davis, que complementa as canções e os vocais até o fim com um lirismo que é algo mais que uma grande musicalidade: tem algo aí que é mais que inspirado, algo que foi tocado, ungido, que se encontra nos domínios do miraculoso. Todo o conjunto - as cordas de Larry Fallon, a guitarra de Jay Berliner (ele tocou em Black Saint and the Sinner Lady, de Charles Mingus), a bateria de Connie Kay - é desse jeito: Van e eles soam como se não estivessem apenas lendo, mas vivendo dentro das mentes uns dos outros. Os fatos podem ser bem diferentes. John Cale estava gravando um álbum solo num estúdio adjacente naquela época, e, segundo ele, "Morrison não conseguia trabalhar com ninguém, então simplesmente o trancaram sozinho no estúdio. Ele gravou todas as músicas apenas com um violão, e mais tarde mixaram o resto com suas fitas".
A história de Cale pode ser ou não real - mas, em todo caso, fatos não ajudam nada aqui. Fato: Van Morrison tinha 22 anos - ou 23 - quando fez esse disco; existem vidas inteiras atrás disso.
Astral Weeks trabalha não com fatos, mas com verdades. Astral Weeks, até onde pode ser definido, é um disco sobre pessoas aturdidas pela vida, completamente atordoadas, atoladas em seus corpos, suas idades e egos, paralisadas pela enormidade daquilo que, num vislumbre, elas conseguem compreender. É um dom tão precioso como terrível, nascido de uma verdade assustadora, porque o que eles vêem é infinitamente belo e mortalmente horripilante; a ilimitada habilidade humana para criar e destruir, de acordo com seus caprichos. Não se trata de mística oriental ou visão psicodélica para além da maionese, tampouco é alguma percepção baudelariana da beleza do nojo e do grotesco. Talvez seja, no fim das contas, a conscientização do milagre da vida condensado em um instante, com seu concomitante inevitável, o vislumbre vertiginoso da capacidade de se machucar e da capacidade de inflingir a dor.
Petrificado entre o êxtase e a angústia. Imaginando se ambos não poderiam ser a mesma coisa, ou pelo menos envoltos em uma relação íntima. Em
T.B. Sheets (lençóis de tuberculose), sua última narrativa mais extensa antes de gravar Astral Weeks, Van Morrison testemunhou quando a garota que ele amava morreu de tuberculose. A canção era claustrofóbica, sufocante, monstruosamente poderosa: "innuendos, inadequacies, foreign bodies" (alusões, inadequações, corpos estranhos). Um monte de gente não engoliu, o editor deste livro dizia que era lixo, mas acho que o disco na verdade o melindrou. Mesmo assim, o que interessa é que certas partes de Astral Weeks - "Madame George", "Cyprus Avenue" - pegam a dor de T.B. Sheets e enterram o mundo nela. Porque a dor de assitir a uma pessoa querida morrer de qualquer doença horrorosa pode ser insuportável, mas pelo menos é algo sabido, de certa maneira entendido, de certa maneira mensurável e que até mesmo leva a algum outro lugar, porque existe um processo: moléstia, deterioração, morte, luto, alguma recuperação emocional. Mas o lindo horror de "Madame George" e "Cyprus Avenue" é precisamente que as pessoas nessas músicas não estão morrendo: estamos vendo a vida em seu primor, e essas pessoas não estão sofrendo de doença, estão sofrendo da natureza - a não ser que a natureza seja uma doença.
Um sujeito está sentado num carro numa rua arborizada, olhando uma garota de 14 anos voltando a pé da escola, desesperadamente apaixonado. Quase saí na porrada com alguns amigos por causa da minha insistência de que boa parte dos primeiros trabalhos de Van Morrison tinham um fixação obsessivamente reiterada com pedofilia, e aqui temos algo que deve ser entendido imediatamente como isso mesmo, mas também como algo muito além. Ele a
ama. Por causa disso, ele está perdido, impotente. Tremento. Paralisado. Enlouquecido. Desesperançado. A natureza está zoando ele. Como só a natureza consegue zoar da natureza. Mas seria, antes de tudo, o amor natural? Não interessa. Lá pelo fim da música ele já havia entrado numa espécie de êxtase alucinatório; a música geme de dor e suspira de desejo enquanto se desenrola. Essa é uma dor suprema, a de estar preso ao corpo de um espectador. E talvez não esteja tão longe de T.B. Sheets, exceto pelo fato de que deve ser muito mais fácil romanticamente sentar e assistir a alguém que você ama morrendo do que vê-la na flor da juventude e saúde e saber que você nunca, jamais poderá tê-la, sequer mesmo falar com ela.
"Madame George" é o redemoinho do álbum. Possivelmente uma das mais compassivas obras musicais já feitas, ela nos pergunta, ou melhor, ela monta a cena para que assistamos ao calvário de um - serei brutal - travesti abandonado com uma empatia tão intensa que, quando o cantor o machuca, nós também o fazemos. (Morrison disse em pelo menos uma entrevista que a canção não tinha a ver com nenhuma espécie de transexual - até onde
ele saiba, ele é rápido em emendar - mas tudo isso é besteira). A beleza, a sensibilidade, santidade da música é que não há nada de sensacionalismo, de exploração, nada de trejeitos; de certa forma Van está certo quando insiste que não se trata de uma drag queen, assim como meus amigos estavam certos e eu errado sobre a questão da "pedofilia" - trata-se de uma pessoa, como nas melhores músicas e na grande literatura.
O cenário é o mesmo da canção anterior - Cyprus Avenue, aparentemente um lugar onde as pessoas vagam, impelidas pelo desejo, em direção a instantes de auto-destruição, confrontos de gelar o sangue com seus próprios destinos. É um lugar elementar de julgamentos impiedosos - vento e chuva figuram nas duas músicas - e, o que é bastante interessante, é um lugar onde esses julgamentos se tornam ainda mais cruéis por serem feitos por
crianças sobre os adultos, em ambos os casos tratam-se de objetos de amor absolutamente indiferentes aos seus futuros amantes. Os garotinhos de "Madame George" são de uma insolência patente - como os pirralhos de rua que acabam canibalizando o primo homossexual em De Repente no Último Verão, de Tennessee William, eles ficam mais que felizes em chegar junto enquanto rola música, festa, bebida de graça e do que fumar, e mais eufóricos ainda cospem nos xodós de George quando todo o resto acaba, o inverno tal qual coveiro se instalando com não apenas vento e chuva, mas também granizo, geade e neve.
O que poderia parecer mais estranho, mas que não parece, é que justamente aquelas características que supostamente deveriam tornar George o mais patético - idade, bebedeira, a maneira com que os garotos pegam seu dinheiro e detonam o seu amor - é o que acaba despertando algo por George no coração do menino que fez a canção. É óbvio que o menino não se "apaixonou pelo amor", ou algo parecido, mas sim - o quê? Oras, só estando afundado nas perversões mais tépidas um ser humano poderia amar um outro por qualquer coisa que não a sua humanidade: amá-lo por suas fraquezas, seus defeitos, e por fim, talvez sua deterioração. A ruína é humana - essa é uma das principais mensagens aqui, e eu não quero, por nenhuma extensão léxica, dizer decadência. O que eu quero dizer é que nessa música, ou em seja lá o que a tenha inspirado, Van Morrison viu a possibilidade absoluta de amar seres humanos no extremo mais longíquo da miséria e que as implicações disso são de fato terríveis, muito mais terríveis que a mera visão de corpos enfeiados pela idade ou o aparente absurdo de um homem devotando sua vida ao artifício vacilante de tentar se parecer com uma mulher.
Você pode dizer ao amor as perguntas que você tem para amar as respostas que aceleram o fim do amor que é amado para amar a terrível desigualdade da experiência humana que ama dizer que estamos por cima disso tudo que perdeu aquele amor para amar o amor que a liberdade poderia ter sido, o trem para a liberdade, mas nós acabamos nunca embarcando, preferimos vagar generosamente fugindo daqueles que são vítimas de si mesmos. Mas quem pode dizer que alguém que se vitimiza não tem o direito àquela compaixão absoluta provocada pelo mais miserável órfãozinho do Terceiro Mundo num anúncio em uma revista do tipo
The New Yorker? Bah, melhro passar por cima dos corpos, ao menos isso lhes dá o respeito que um dia eles teriam merecido. Onde eu vivo, em Nova York (sem querer fazer disso mais do que é, o que é difícil), todo mundo que eu conheço costuma passar por cima de corpos que bem poderiam estar mortos ou então morrendo, sem dor. E eu me pergunto com qual lógica foi originalmente concebida a idéia de que tal ação significa demonstrar aos refugos humanos o respeito supremo que eles merecem.
Há, claro, um raciocínio - que mais resta fazer? - mas isso só serve para segurar o medo do nosso próprio abandono face à vida plana como ela é: uma planície que se estende ao infinito além dos horizontes que nós, apenas nós, inventamos. Vamos lá, morra disso. Enquanto escrevo isto aqui, leio no Village Voice as diatribes de uns fulanos abrindo clubes de sadomasoquismo heterossexual em Manhattan, dizendo coisas do gênero "S&M é apenas uma outra forma igualmente válidade de amor. Por que as pessoas não podem aceitar isso, nunca saberemos". Dá mais vontade de pular da janela do quinto andar do que apenas ler o resto do artigo, mas dificilmente é o fim do mundo; não chega nem perto das feridas que se abrem todos os dis em todos os lugares e que são levadas de maneira tão casual por todos nós, como simples fatos da vida. Talvez seja uma questão de quanto você realmente quer se sujeitar. Se você aceita, por um momento que seja, a idéia de que cada vida humana é tão preciosa e delicada como um floco de neve e aí encara um bebum na saída de um bar, você vai ter que penar e se transformar em uma esponjua que suga os problemas de todos os outros babacas até se sentir você mesmo um grnade babaca, e assim estabelecer os limites apropriados. Você pára de sentir. Mas sabe que é aí que começa a morrer. Então você briga consigo mesmo. Quanto deste horror eu consigo realmente me permitir pensa a respeito? Talvez a mais muda manequim de vitrine seja mais sábia que alguém que só permite que sua sensibilidade o leve a destruir tudo aquilo que toca - mas novamente, lembrando "Madame George", só o fato de reconhecer que aquela pessoa existe, só em tocar a sua bochecha e então querer morrer por se dar conta do fardo supremo que é ser obrigado a partilhar deste mundo com ela não é mais que o primeiro passo. A consciência de estar vivo tem justamente a ver com essa depressão e a exaltação e o insuportável e o tão-almejado. Por favor, volte e me deixe em paz sozinho. Porém quando estamos solitários, mas acompanhados, podemos falar o quanto for sobre a universalidade desse abismo: não faz a mínima diferença, o superior só vai ao encontro do inferior por socorro, UNICEF para os parentes, e aí você coça e cospe em violenta resignação ao fato consumado de não haver absolutamente nada que você possa fazer a não ser rejeitar finalmente qualquer um que sofra mais do que você. Numa hora dessas, oferecer um novo respiro é traição. Taí por que você deixa de lado suas causas liberais, larga a humanidade sofredora a morrer em condições ainda piores das de antes de você aparecer em suas vidas. Você despertou as esperanças deles. O que lhe faz ainda mais vil que a imundície mais escrofulosa. Mais pérfido que os garotos ignorantes que comeriam Madame George por meia dúzia de cigarros. Porque você cometeu o crime do conhecimento e, assim, não apenas passou de lado ou por cima de alguém que você sabia estar sofrendo, mas também violou a sua privacidade, a última posse dos despossuídos.
Tal conhecimento é possivelmente a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa (uma pessoa de sorte), assim não é de espantar que o protagonista de Morrison tenha dado as costas à Madame George, fugido para a estação de trem, tentando correr o mais longe possível do que ele viu como uma vida inteira prestes a pegá-lo de jeito. E não é de espantar também que Van Morrison nunca mais conseguiu chegar tão perto de ver a vida cara-a-cara, não é de espantar que ele se voltou para Tupelo Honey ou mesmo Hard Nose the Highway, com seu lado inteiro só de canções sobre folhas cainda das árvores. Em Astral Weeks e T.B. Sheets ele se confrontou com o suficiente para preencher uma vida inteira. É claro que, por haver recebido esse presente desmedidamente tocante e igualmente assustador de Morrison, não se pode culpar ninguém por não dar muita bola para "Old, Old Woodstock" ou pequenas homílias como "You've Got to Make It Through This World on Your Own" e "Take It Where You Find It".
Por outro lado, deveríamos também lembrar que desolação, mágoa e angústia dificilmente são as únicas coisas na vida, ou em Astral Weeks. Elas são apenas as coisas que, talvez, nós possamos agarrar e explicar mais facilmente, o que, suponho, diz muito sobre o quanto as nossas almas evoluíram. Eu disse que não iria reduzir as outras canções deste álbum tentando explicá-las, e não vou mesmo. Mas isso não quer dizer que, levando tudo em conta, uma justaposição de poeta não cairia bem.

If I ventured in the slipstream
Between the viaducts of your dreams
Where the mobile steel rims crack
And the ditch and the backroads stop
Could you find me
Would you kiss my eyes
And lay me down
In silence easy
To be born again?

Van Morrison

Meu coração de seda
Está cheio de luzes,
Com sinos perdidos,
Com lírios e abelhas.
Irei bem longe,
Mais longe que aquelas colinas,
Mais longe que os mares,
Para perto das estrelas,
Para pedir ao Cristo nosso Senhor
Que me devolva a alma que tinha
Antigamente, quando era criança,
Amadurecida com lendas,
Com um boné emplumado
E uma espada de madeira.

Federico García Lorca

Lester Bangs
STRANDED, 1979


BANGS, Lester. Reações Psicóticas. São Paulo: CONRAD Editora do Brasil, 2005, p.21-39.