domingo, 30 de janeiro de 2011

George Orwell. 1984

Como saber quais daquelas coisas eram mentiras? Talvez fosse verdade que as condições de vida do ser humano médio fossem melhores hoje do que eram antes da Revolução. Os únicos indícios em contrário eram o protesto mudo que você sentia nos ossos, a percepção instintiva de que suas condições de vida eram intoleráveis e de que era impossível que em outros tempos elas não tivessem sido diferentes. Pensou que as únicas características indiscutíveis da vida moderna não eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida - era só olhar entorno para constatar - não tinha nada a ver com as mentiras que manavam das teletelas, tampouco com os ideais que o Partido tentava atingir. Porções consideráveis dela, mesmo da vida de um membro do Partido, eram neutras e apolíticas, simplesmente questão de suar a camisa realizando trabalhos horrorosos, de lutar para conseguir um lugar no metrô, de cerzir uma meia velha, de arrumar um saquinho de sacarina, de economizar uma bagana. O ideal definido pelo Partido era uma coisa imensa, terrível e luminosa - um mundo de aço e concreto cheio de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes -, uma nação de guerreiros e fanáticos avançando em perfeita sincronia, todos pensando os mesmos pensamentos e bradando os mesmos slogans, perpetuamente trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo - trezentos milhões de pessoas de rostos iguais. A realidade eram cidades precárias se decompondo, nas quais pessoas subalimentadas se arrastavam de um lado para o outro em seus sapatos furados no interior de casas do século XIX com reformas improvisadas, sempre cheirando a repolho e a banheiros degradados. Winston tinha a sensação de ter uma visão de Londres, , imensa e semidestruída, cidade com um milhão de latas de lixo, e fundida a essa visão estava a imagem da sra. Parsons, aquela mulher com vincos no rosto e cabelo espigado, lidando desamparada com um encanamento entupido.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.93.

André Dahmer. Alguma poesia

salva-mar

canta palavrões lindos
senta de cócoras
sobre minha
rígida
aorta

logo você
belo bípede
trepando como
um quadrúpede

e eu

mesmo em pé sonho
como dois em cada dois
mortais

que possuo
um amor
que me possui

vinho novo

se faltar
carinho
ninho

se sobrar
insônia
sonha

se faltar
a paz



minas gerais


trecho de quando um valente valete abandona seu rei

o mundo que amolecer cacetes
o mundo quer endurecer corações

o bar fechou

controladamente
sinto raiva de tudo

um carro passa
e alguém me xinga

sento no chão e repito baixinho o nome dos meus mortos
balanço o corpo com aquele meu jeitão de viciado

rezo para a padaria abrir

abro a carteira para beijar sua foto
gasto o resto do meu tempo pensando
no quanto fomos infelizes

tenho dois cigarros
um cartão de débito
e algumas dívidas afetivas

DAHMER, André. Ninguém muda ninguém. Rio de Janeiro: Flâneur, 2010, pp. 34, 81 , 120, 130.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Charles Bukowski

esta noite

"seus poemas sobre as garotas ainda estarão por aí
daqui a 50 anos quando as garotas já tiverem ido",
meu editor me telefona.

caro editor:
parece que as garotas já se
foram.

entendo o que o senhor diz

mas me dê uma mulher verdadeiramente viva
nesta noite
cruzando o piso em minha direção

e o senhor pode ficar com todos os poemas

os bons
os maus
ou qualquer outro que eu venha a escrever
depois deste.

entendo o que o senhor diz.

O senhor entende o que eu digo?

BUKOWSKI, Charles. O amor é um cão dos diabos. Porto Alegre: L&PM, 2010, p.36.

sábado, 8 de janeiro de 2011

John Fante. 1933 FOI UM ANO RUIM

Permaneci deitado na noite branca vendo o mau hálito escapar em pequenas nuvens. Sonhadores, éramos uma casa repleta de sonhadores. A vovó sonhava com sua casa na distante Abruzzi. O meu pai sonhava em ver-se livre das dívidas e empilhando tijolos lado a lado com seu filho. A minha mãe sonhava com a divina recompensa de um marido que não se ausentava de casa. Minha irmã Clara sonhava em tornar-se uma freira e o meu irmãozinho Frederick mal podia esperar para crescer e tornar-se um cowboy. Fechando os olhos eu pude ouvir o zumbido dos sonhos pela casa e então adormeci.

FANTE, John. 1933 foi um ano ruim. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p.33.


*

Seus olhos saltaram de espanto. Eu o soltei e ele se virou e entrou no ônibus. Eu me afastei, cuspindo o gosto de óleo enquanto ele desaparecia na nevasca. Meti as mãos nos bolsos e comecei a subir a Pearl Street, afundado os pés a caminho de casa, debaixo daquela tempestade sem sentido. Mas a neve tinha suas vantagens, afinal. Ela nos escondia dos outros, escondia nossas sardas e orelhas de abano e a estatura ridícula, enquanto passamos pelos outros fantasmas daquela desolação, cabeças pendidas, olhos abaixados, nossa culpa e inutilidade bem protegidos lá dentro.

FANTE, John. 1933 foi um ano ruim. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p.61.