segunda-feira, 23 de maio de 2011

SÓ OS METALEIROS SÃO FELIZES (2011)

Será que todo mundo quer ser o que não é? A minha resposta seria sim, não fosse a existência dos metaleiros.
Pense: você já viu algum metaleiro no camarote de carnaval? Já viu algum metaleiro estrelando comercial de cerveja? E um sex symbol metaleiro, já viu? Claro que não. O metal não está na moda, nunca esteve, jamais estará. E é justamente por isso que em show de heavy metal não tem área VIP, porque não há celebridade, todo mundo é igualitariamente metaleiro lá dentro.
Metaleiro é o que é. E graças a esse princípio simple, porém raro, só o metal é capaz de gerar um fenômeno chamado Anvil, a pior banda do mundo, um desastre musical que vem dando errado há mais de 30 anos. Você conhece quantas bandas com mais de três décadas de existência? Tem o Who, os Stones e... o Anvil. É tanta persistência, obstinação e falta de noção, que resolveram documentar: Anvil! The Story of Anvil é o melhor documentário musical que já vi, simplesmente porque conta a história de dois amigos que, com ou sem dinheiro, com ou sem sucesso, com ou sem talento, querem continuar sendo metaleiros.
Em um mundo em que todos querem ser o que não são, eu queria ser metaleiro, porque só os metaleiros usam jaquetas jeans sem manga e fazem air guitar sem vergonha. Só os metaleiros são felizes. De verdade.

SOKOL, Miguel. "Vida pop" em Rolling Stone Brasil, nº55, p.24, abril de 2011.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Charles Bukowski. O CAPITÃO SAIU PARA O ALMOÇO E OS MARINHEIROS TOMARAM CONTA DO NAVIO (1998)

29/08/1991......................................................................22:55

Aqui, há uma pequena sacada, a porta está aberta e posso ver as luzes dos carros na Harbor Freeway sul, nunca param, o rolar das luzes, sem parar. Todas aquelas pessoas. O que estão fazendo? O que estão pensando? Todos nós vamos morrer, que circo! Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros, mas não faz. Somos aterrorizados e esmagados pelas trivialidades, somos devorados por nada.
Continue, Mahler! Você fez com que esta fosse uma noite maravilhosa. Não pare, filho da puta! Não pare.



30/09/1991......................................................................23:36

Música horrível no rádio, mas não se pode esperar um dia 100 por cento. Se conseguir 51, você ganhou. Hoje foi um 97.
Vejo que Mailer escreveu um enorme romance novo sobre a CIA e etc. Norman é um escritor profissional. Uma vez pergunto à minha mulher: "O Hank não gosta dos meus livros, não é?". Norman, poucos escritores gostam do trabalho dos outros escritores. Eles só gostam deles quando morrem ou se já morreram há muito tempo. Os escritores só gostam de cheirar a própria merda. Sou um desses. Não gosto nem mesmo de falar com escritores, de vê-los ou, pior, de ouvi-los. E o pior é beber com eles, se babam todos, realmente são lamentáveis, parece que estão procurando pela asa da mãe.
Prefiro pensar sobre a morte do que sobre escritores. Muito mais agradável.
Vou desligar esse rádio. Os compositores às vezes estragam tudo. Se eu tivesse de falar com alguém, acho que preferiria muito mais um cara que conserta computadores ou um agente funerário. Com bebida ou sem bebida. De preferência, com.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Manoel de Barros. ESCOVAR (2003)

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a Infância. São Paulo: Planeta, 2003, I.