segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gérard Vincent. SEGREDOS DA HISTÓRIA E HISTÓRIA DO SEGREDO

PRÉ-HISTÓRIA DA HISTÓRIA?

O que presenciou o indivíduo que nasceu no começo do século XX e viveu conscientemente todo o nosso período (ele teria catorze anos no começo da Primeira Guerra Mundial)? Os massacres de 1914-1918, a Revolução Russa, Hitler e Auschwitz, Stálin e o Gulag, Hiroshima, Mao Tse-Tung e a Revolução Cultural, Pol Pot e o genocídio cambojano, a deriva da América Latina com seus caudilhos sanguinolentos e seus "desaparecidos", a África faminta, a revolução islâmica e o restabelecimento da charia.
Mas Hitler, Stálin, Mao e Pol Pot não teriam feito nada se o mimetismo não tivesse criado inúmeros sósias em miniatura. Por sinceridade, cinismo ou, mais simplesmente, por uma questão de sobrevivência, eles puderam dar, nas proporções que lhes foram permitidas, livre curso a seus impulsos sádicos.
Ainda mais angustiante é esta observação: os torturadores de hoje são muitas vezes as vítimas de ontem. Essa inversão dos papéis - o mártir que vira carrasco - levanta uma interrogação ontológica extremamente banal: o que é o homem? Instados a responder, os jovens candidatos à Escola Normal Superior reviram as bibliotecas. Nosso caminho é outro, indutivo. Foi a observação do trágico - Pol Pot "repetindo" para as elites cambojanas a armadilha de Esparta aos hilotas - que nos levou a colocar a mais antiga questão da história do pensamento. Se se crê - e tal é a nossa convicção - que a história vivida não se explica pela vontade da Providência, nem pelo papel determinante de tal ou qual personagem carismática, nem pelas decisões e medidas de uma pequena oligarquia, nem pela ação transformadora das instituições, nem pelo messianismo do proletariado e de todos os oprimidos, e sim pela soma/subtração (o saldo) das volições de uma multidão de indivíduos que interiorizaram uma ética - digamos um acordo entre normas e valores -, é certamente o estudo da vida privada que nos permite esperar um acesso ao conhecimento do sujeito social. É isso que nos estimula a prosseguir em nosso estudo, uma simples reflexão epistemológica, um primeiro passo de uma pré-história da história-narrativa.

VINCENTE, Gérard. "Uma história do segredo?" em História da vida privada vol.5: Da Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.177-178.

Haruki Murakami. MINHA QUERIDA SPUTNIK

Por que as pessoas têm de ser tão sós? Qual o sentido disso tudo? Milhões de pessoas neste mundo, todas ansiando, esperando que outros as satisfaçam, e contudo se isolando. Por quê? A terra foi posta aqui só para alimentar a solidão humana?
Virei-me de costas na laje, contemplei o céu e pensei em todos os satélites feitos pelo homem girando ao redor da Terra. O horizonte continuava delineado com um brilho tênue, e estrelas começavam a cintinlar no céu profundo, cor de vinho. Busquei entre elas a luz de um satélite, mas ainda estava muito claro para localizar um a olho nu. As poucas estrelas pareciam fixas no lugar, imóveis. Fechei os olhos e prestei bastante atenção aos descendentes de Sputnik, mesmo agora circulando ao redor da Terra, a gravidade seu único elo com o planeta. Almas solitárias de metal, na escuridão desobstruída do espaço, encontravam-se, passavam umas pelas outras e se separavam, nunca mais se encontrando. Nenhuma palavra entre elas. Nenhuma promessa a cumprir.

MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.195.

De modo que é assim que vivemos nossas vidas. Não importa quão profunda e fatal seja a perda, o quão importante fosse o que nos roubaram - que foi arrebatado de nossas mãos -, mesmo que mudemos completamente, com somente a camada externa de pele igual à de antes, continuamos a representar as nossas vidas dessa maneira, em silêncio. Aproximamo-nos cada vez mais do fim da dimensão do tempo que nos foi estipulado, dando-lhe adeus enquanto vai minguando. Repetindo, quase sempre habilmente, as proezas sem fim do dia-a-dia. Deixando para trás uma sensação de vazio imensurável.

[...]

Eu sonho. Às vezes, acho que é a única coisa certa a fazer. Sonhar, viver no mundo dos sonhos - exatamente como Sumire dizia. Mas não dura para sempre. A vigília sempre chega para me levar de volta.
Acordei às três da manhã, acendi a luz, sentei-me na cama e olhei o telefone ao meu lado. Imagino Sumire em uma cabine telefônica, acendendo um cigarro e apertando os botões do meu número. Seu cabelo está embaraçado; ela usa um paletó espinha-de-peixe masculino, vários tamanhos acima do seu, e meias que não combinam. Ela franze o cenho, engasgando um pouco com a fumaça. Demora para apertar todos os números corretamente. Sua cabeça está cheia de coisas que quer me contar. Ela é capaz de falar até amanhecer, quem sabe? Sobre, digamos, a diferença entre símbolos e signos. Meu telefone parece que vai tocar a qualquer minuto. Mas não toca. Deito-me e olho fixo para o telefone silencioso.


MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.226-227.

domingo, 17 de abril de 2011

Haruki Murakami. MINHA QUERIDA SPUTNIK

Quando a minha juventude escapuliu de mim? Pensei, de repente. Estava acabado, não estava? Ainda ontem eu estava crescendo. Huey Lewis and the News tinham algumas músicas de sucesso na época. Não fazia muito tempo. E agora, ali estava eu, dentro de um circuito fechado, girando minhas rodas. Sabendo que não chegaria a lugar nenhum, mas girando, assim mesmo. Eu tinha de. Tinha de mantê-las girando ou não conseguiria sobreviver.

MURAKAMI, Haruki. Minha querida Sputnik. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p.88-89.