segunda-feira, 28 de março de 2011

Haruki Murakami. APÓS O ANOITECER

- Sabe, a nossa vida não se divide simplesmente em claro e escuro. Entre essas duas coisas existe uma zona intermediária chamada sombra. Reconhecer e compreender as diversas tonalidades que compõem essa sombra é o que faz uma inteligência saudável. E para adquirir essa inteligência saudável é necessário tempo e esforço. Eu não acho que você seja uma pessoa com personalidade sombria.
Maria pensa sobre o que Takahashi acaba de lhe dizer.
- Mas sou covarde.
- Não mesmo. Uma menina covarde jamais sairia sozinha pela cidade, aidna por cima à noite. Você veio até aqui em busca de algo, não é mesmo?
- Aqui? - pergunta Mari.
- Isso mesmo. Um lugar diferente do que está acostumada; um lugar distante do seu território.
- E será que eu encontrei algo? Aqui?

MURAKAMI, Haruki. Após o anoitecer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.190.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Enéas de Souza. O PENSAR DE HIROSHIMA, MON AMOUR (ALAIN RESNAIS, 1959)

O cinema é um pensar através da imagem e do som, envolvendo uma narrativa, não necessariamente uma história, e que através da montagem de seus vários blocos de imagens em movimento, desenvolve um ritmo, que é o ritmo da forma do cinema. Por isso Godard diz muito bem: o cinema é uma forma que pensa e que dá a pensar.

SOUZA, Enéas de. "Do horror à beleza do cinema" em Teorema, Porto Alegre, nº14, agosto 2009, p.5.

quarta-feira, 9 de março de 2011

John Fante. ESPERE A PRIMAVERA, BANDINI


Café da manhã para três meninos e um homem. Seu nome era Arturo, mas ele o detestava e queria se chamar John. Seu sobrenome era Bandini, mas queria que fosse Jones. A mãe e o pai eram italianos, mas ele queria ser americano. O pai era pedreiro, mas ele queria ser um lançador dos Chicago Cubs. Moravam em Rocklin, Colorado, população dez mil, mas ele queria morar em Denver, a cinqüenta quilômetros dali. Seu rosto era sardento, mas queria que fosse limpo. Freqüentava uma escola católica, mas queria ir para a escola pública. Tinha uma namorada chamada Rosa, mas ela o detestava. Era coroinha, mas era um demônio e detestava coroinhas. Queria ser um bom menino, mas tinha medo de ser um bom menino porque receava que seus amigos o chamassem de bom menino. Era Arturo e adorava o pai, mas vivia no temor do dia em que cresceria e seria capaz de bater nele. Venerava o pai, mas achava que a mãe era fraca e tola.

Fante, John. Espere a primavera, Bandini. tradução de Roberto Mugiatti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p.26

sexta-feira, 4 de março de 2011

Elias Canetti. MASSA E PODER

Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando: quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente - quão facilmente se pode rasgá-las, quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima.
Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si foram ditadas por esse temor de contato. As pessoas trancam-se em casas que ninguém pode adentrar, somente nelas sentindo-se mais ou menos seguras. O medo do ladrão não se deve unicamente a seu propósito de roubar, mas é também um temor ante seu toque súbito, inesperado, saído da escuridão. A mão transformada em garra é o símbolo que sempre se emprega para representar esse medo. Trata-se aí de uma questão que, em boa parte, manifesta-se no duplo sentido da palavra agarrar [angreifen]. Nesta encontram-se contidos ao mesmo tempo tanto o contato inofensivo quanto o ataque perigoso, e algo deste último sempre ecoa no primeiro. Já o substantivo agressão [Angriff], por sua vez, viu-se reduzido exclusivamente ao sentido negativo da palavra.

CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.13.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Jack Kerouac. ON THE ROAD



"Jack Kerouac" da Gang 90


Ontem a noite eu sonhei / que eu era Jack Kerouac / E subi num terraço: rua Houston / E vi as duas torres gêmeas brilhando.

O cabelo louro da menina / As tranças negras do crioulo / A sua guitarrra - a sua angústia calma.

Eu desci / Peguei a minha lata de spray / Sai pela rua, pintei dois olhos verdes nas paredes.

Ontem a noite eu sonhei / que conversava com Jack Kerouac / Ele chegava e me dizia / "Hey Man! eu renasci black / E agora sou um tocador de piston!" / Eu só sei que o som era tão alto que despertou o mundo inteiro / Eu acordei, e saí mandando brasa nas estradas do mundo.

Hey, Jack! Bye Bye

Trecho de On the road (Pé na estrada):

"Nessa época, 1947, o bop se alastrava loucamente pela América. Os caras no Loop continuavam soprando, mas com um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e outro período que começou com Miles Davis. E enquanto eu estava sentado ali ouvindo aquele som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação e em como todos eles na verdade viviam dentro dos limites de um único e imenso quintal, fazendo alguma coisa frenética, correndo dum lado para outro. E pela primeira vez na minha vida, na tarde seguinte, segui para o Oeste. Era um lindo dia ensolarado, perfeito para cair na estrada."

KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Porto Alegre: L&PM, 2010, p.31-32.