domingo, 4 de dezembro de 2011

"Locais": Lars Von Trier. ANTICRISTO (2009) & Kenzaburo Oe. O ESPECTRO DE UMA PULGA (1983)



Depois, existe a lembrança de um episódio que me perturbou profundamente na pré-adolescência, não tanto por nele estar envolvido um deficiente mental, mas por haver, sobreposta a ele, certa percepção profunda relacionada a um "local" e que me fez pensar na necessidade de assegurar um "local" onde eu e Iiyo pudéssemos viver.
Foi na primavera do em que, depois de deixar para trás o vale na floresta - lembro-me de ter sentido que aquela era uma fase transitória, passada a qual eu haveria de retornar a meu vale -, eu começara a viver numa pensão familiar de uma cidade provinciana. Era também o último ano de ocupação do território japonês pelas Forças Aliadas, e a presença desse Exército e o episódio estão intimamente ligados, ao menos em minha imaginação.
O incidente tinha sido noticiado num jornal da província - o jornal me foi mostrado posteriormente pelo dono do pensionato, militar que perdera o emprego com o término da guerra - e, de acordo com a reportagem, um menino com problemas mentais havia assassinado uma numa pequena ilha do mar Interno. Ele havia empalado a garota com um enorme espeto de bambu desde a vagina até a garganta. Ao ser preso no local logo depois do crime, o menino, da minha idade, usava um chapéu feito de jornal dobrado cujo aspecto lembrava o quepe usado pelos soldados americanos. Eu mesmo sabia como dobrar o jornal para obter este tipo de quepe, a dobradura andou em voga por um bom tempo...
Lembr0-me também do ex-capitão me dizendo que não queria nenhum de nós, jovens, influenciados por aquele incidente, mas o que me abalara profundamente não tinha sido o detalhe sexual do crime. (Não obstante, lembro-me de ter pensado, com o espanto de quem faz uma nova descoberta: "Realmente, há lúmen interligando o corpo humano desde a genitália até a garganta!".) O que realmente me abalou foi a foto do local do crime que acompanhava a reportagem, uma horta estreita de aspecto abandonado na encosta da montanha de uma ilha, cercada de bambuzal e de arbustos densos, um grotão onde a terra era sempre úmida e fria... Ocorre-me agora que existe semelhança topográfica entre uma ilha pequena e um vale no meio de uma floresta - floresta é mar, muito embora ilha e vale se relacionem inversamente em termos de projeção e reentrância -, mas, seja como for, lembrei-me então que havia em meu vale um lugar semelhante e o mentalizei. O ser humana pratica atos cruéis e indecentes em "locais" semelhantes. Nesse caso, não é o ser humano que age, o "local" é o que o faz agir. Segundo diziam, o menino era débil mental, ou seja, um tipo facilmente influenciado pelo magnetismo "local". No meu vale, as crianças evitavam frequentar tais "locais", e os adultos que tinha de arar essas terras - gente obrigada a frequentá-las por contingências da vida, gente que morria cedo sem que ninguém lhes estranhasse a morte prematura e ao redor das quais pairava algo escuro, perceptível mesmo às crianças - para lá seguiam contrafeitos e com feições contraídas.
A essa altura, percebi consternado que, depois de abandonar meu vale, eu vivia naquele momento num local de estranhos, numa cidade provinciana onde não havia florestas, apenas um rio desmesuradamente grande e árvores desconhecidas, para mim desprovidas de qualquer indicativo, e onde eu não sabia localizar os "locais" repugnantes. Nessas circunstâncias, corria o risco de me ver num desses "locais" sem saber. Eu podia até estar num desses "locais" naquele exato momento, não podia?

OE, Kenzaburo. Jovens de um novo tempo, despertai! São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.132-134.