terça-feira, 2 de outubro de 2012

Hannah Arendt. A CONDIÇÃO HUMANA (1958)

Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de um terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?
(...)
Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada - um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.
(...)
Ainda não sabemos se esta é uma situação definitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.
(...) é o discurso que faz do homem um ser político. 
(...)
Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.
(...)
A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fada, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro dessa sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em termos de trabalho, e não como meio de ganhar o próprio sustento. O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.
(...)
O que proponho nas páginas que se seguem é uma reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes. (...). O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo.




sábado, 18 de agosto de 2012

Paul Veyne sobre a História

O livro da história que importa, atualmente, é o livro que encontra palavras que permitem "tomar consciência" de realidades vagamente intuídas sem saber tematizá-las.

VEYNE, Paul. "A história conceitualizante" em NOVAIS, Fernando; DA SILVA, Rogerio (orgs.). Nova História em perspectiva volume 1. São Paulo: Cosac&Naify, 2011, p.490.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Alice Ruiz - Poemas


De A a Z
até no alfabeto
tem eu e você 

        *

já estou daquele jeito
que não tem mais conserto
ou levo você pra cama
ou desperto

        *

gosto à beça
esse coração 
na tua cabeça

        *

quero fazer um verso
com todos os elementos
meus encantos
meus lamentos
que atravesse
ares e mares
e te alcance
e te arranque
de todos os pensamentos

 RUIZ S., Alice. Dois em um. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.65, 86, 99, 108.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Italo Calvino. AS CIDADES INVISÍVEIS (1972)

O atlas do Grande Khan também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária.
Kublai perguntou para Marco:
- Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?
- Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envai e não sabe quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu império; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse.
O Grande Khan já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World.
Disse:
- É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo:
- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.150.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Italo Calvino. O TEMPLO DE MADEIRA (1976)

No Japão, o que é produto da arte não esconde nem corrige o aspecto natural dos elementos de que é formado. Aí está uma constante do espírito nipônico que os jardins ajudam a compreender. Nos edifícios e nos objetos tradicionais sempre sã reconhecíveis os materiais de que são feitos, assim como na culinária. A cozinha japonesa é uma composição de elementos naturais que visa sobretudo a realizar uma forma visual, e esses elementos chegam à mesa conservando em grande parte seu aspecto de origem, sem ter sofrido as metamorfoses da cozinha ocidental, para a qual um prato é tanto mais uma obra de arte quanto mais seus ingredientes forem irreconhecíveis.
No jardim, os vários elementos são postos juntos segundo critérios de harmonia e critérios de significado, como as palavras num poema. Com a diferença de que essas palavras vegetais mudam de cor de forma ao longo do ano, e mais ainda com o passar dos anos: mutações calculadas em todo ou em parte ao se projetar o poema-jardim. Depois as plantas morrem e são substituídas por outras semelhantes, dispostas nos mesmo lugares: com o passar dos séculos, o jardim é continuamente refeito, mas permanece sempre o mesmo.
E esta é outra constante posta em evidência pelos jardins: no Japão a antiguidade não tem sua substância ideal na pedra como o Ocidente, onde um objeto ou um edifício só é considerado antigo caso se conserve materialmente. Aqui estamos no universo da madeira: o antigo é aquilo que perpetua seu desenho através do contínuo destruir-se e renovar-se dos elementos perecíveis. Isso vale tanto para os jardins quanto para os templos, os palácios, as vilas e os pavilhões, todos em madeira, todos muitas vezes devorados pelas chamas dos incêndios, muitas vezes mofados e apodrecidos ou feitos em pó pelos cupins, mas a cada vez recompostos parte por parte: os tetos de estrados de casca de cipreste prensada, que são refeitos a cada sessenta anos, os troncos das pilastras e do vigamento, as paredes de tábuas, os telhados de bambu, os pavimentos recobertos de tapetes (os indefectíveis tatames, unidade de medida da superfície dos interiores).
Na visita  aos edifícios plurisseculares de Kyoto, o cicerone assinala a cada quantos anos é substituída essa ou aquela estrutra da construção: a caducidade das partes ressalta a antiguidade do conjunto. Surgem e caem as dinastias, as vidas humanas, as fibras dos troncos; o que perdura é a forma ideal do edifício, e não importa se cada porção de seu suporte material foi retirada e trocada inúmeras vezes, e se as mais recentes ainda cheiram a madeira recém-aplainada. Assim, o jardim continua sendo o jardim desenhado cinquenta anos atrás por um arquiteto-poeta, ainda que cada planta siga o curso das estações, das chuvas, do gelo, do vento; assim os versos de uma poesia são transmitidos no tempo, enquanto o papel das páginas nas quais serão vez a vez transcritos se desfaz em pó.
O templo de madeira marca o cruzamento de duas dimensões do tempo; mas para chegar a entendê-lo devemos afastar do pensamento palavras como "o ser e o devir", porque se tudo se reduz à linguagem da filosofia do mundo de onde partimos não valeria a pena ter feito tanta estrada. O que o templo de madeira nos pode ensinar é isto: para entrar na dimensão do tempo contínuo, único e infinito, o único caminho é passar através do seu contrário, a perpetuidade do vegetal, o tempo fragmentado e múltiplo do que se alterna, se dissemina, brota, resseca ou apodrece.
Mais que os templos cheios de estátuas, de alta estrutura em pagode, atraem-me as construções baixas e os interiores guarnecidos apenas de tapetes, que geralmente correspondem a edifícios profanos, vilas ou pavilhões, mas também em alguns casos a templos ou santuários que convidam a uma meditação abstrata, ou a uma concentração incorpórea. Assim é o templo chamado Pavilhão de Prata, ágil construção de madeira em dois andares à margem de um pequeno lago, com uma única estátia (Kannon, encarnação feminina de Buda) num ambiente para a meditação zen chamado Sala do Esvaziamento da Alma. Assim é o templo Manju-in, que um incompetente como eu julgaria que é zen, mas não é: um templo que parece uma mansão de muitas salas baixas, quase vazias, com os tatames, os vasos de ikebana (que nesta estação apresentam ramos de pinho e camélias, estrelítzias e camélias, e outras combinações de outono), poucas e discretas estátuas e muitos jardinzinhos ao redor.
O templo de madeira atinge sua perfeição quanto mais despojado e sem adornos é o espaço que o acolhe, pois bastam a matéria de que é construído e a facilidade com que se pode desfazê-lo e refazê-lo igual a antes para demonstrar que todas as partes do universo podem cair uma a uma, mas que há algo que resta.

CALVINO, Italo. "O Templo de Madeira" em Coleção de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.180-182.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Cacaso - BUSTO RENASCENTISTA

BUSTO RENASCENTISTA

quem vê minha namorada vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a praça onde guerreiros se reconciliam
delicadamente seus seios narram façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser possuidora de tão belas omoplatas?

feliz de mim que frequento amiúde e quanto posso a buceta dela


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Kenzaburo Oe. JOVENS DE UM NOVO TEMPO, DESPERTAI! (1983)

- O ser humano às vezes magoa ou é magoado por seus semelhantes no decorrer da vida, não é? E ainda no decorrer da vida, ele salda tanto débito quanto crédito. Ele compensa seu semelhante e também se faz compensar. Ele acerta as contas e depois... Desde os meus tempos de estudante sempre tive a mente ocupada por esse tipo de pensamento, voltado para o futuro, sabe? Mas essa é uma espécie de conta que não se consegue acertar no decorrer de uma vida. No fim, não nos sobra outro recurso senão o de pedir perdão às pessoas que magoamos e, é claro, de perdoar quem nos magoou. Acabei chegando à conclusão de que essa talvez seja nossa única saída. Jesus perdoa os pecados, não perdoa? Dizem que esse ideário surgiu na Europa pós-Grécia e que foi invenção do cristianismo, mas você já chegou a pensar nesse tipo de coisa?
- Bem, eu não entendo de cristianismo - respondi, sentindo-me inútil e culpado. - Mas Blake é ainda mais radical; ele diz que o pecado é um reflexo da soberbia da razão e que como a humanidade inteira chafurda nele, não faria sentido condená-lo ou tentar uma represália contra ele, e que mais importante que tudo é obter o "perdão dos pecados" através de Jesus.
- Obter o "perdão dos pecados"? Pode ser que as coisas se tornassem um pouco mais fáceis se pudéssemos pensar desse jeito. Porque tanto o mal que fazemos aos outros como o que os outros nos fazem, e de que nos lembramos com rancor por muito tempo, significa sofrimento para nós, não é mesmo?
Depois que meu amigo H faleceu, contaram-me que ele teria dito à mulher, momentos depois de sua internação: "Eu estraguei sua vida, não é mesmo?". Lembrei-me então dessa nossa conversa.

OE, Kenzaburo. Jovens de um novo tempo, despertai! (tradução de Leiko Gotoda). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.276-277.