terça-feira, 12 de junho de 2012

Italo Calvino. O TEMPLO DE MADEIRA (1976)

No Japão, o que é produto da arte não esconde nem corrige o aspecto natural dos elementos de que é formado. Aí está uma constante do espírito nipônico que os jardins ajudam a compreender. Nos edifícios e nos objetos tradicionais sempre sã reconhecíveis os materiais de que são feitos, assim como na culinária. A cozinha japonesa é uma composição de elementos naturais que visa sobretudo a realizar uma forma visual, e esses elementos chegam à mesa conservando em grande parte seu aspecto de origem, sem ter sofrido as metamorfoses da cozinha ocidental, para a qual um prato é tanto mais uma obra de arte quanto mais seus ingredientes forem irreconhecíveis.
No jardim, os vários elementos são postos juntos segundo critérios de harmonia e critérios de significado, como as palavras num poema. Com a diferença de que essas palavras vegetais mudam de cor de forma ao longo do ano, e mais ainda com o passar dos anos: mutações calculadas em todo ou em parte ao se projetar o poema-jardim. Depois as plantas morrem e são substituídas por outras semelhantes, dispostas nos mesmo lugares: com o passar dos séculos, o jardim é continuamente refeito, mas permanece sempre o mesmo.
E esta é outra constante posta em evidência pelos jardins: no Japão a antiguidade não tem sua substância ideal na pedra como o Ocidente, onde um objeto ou um edifício só é considerado antigo caso se conserve materialmente. Aqui estamos no universo da madeira: o antigo é aquilo que perpetua seu desenho através do contínuo destruir-se e renovar-se dos elementos perecíveis. Isso vale tanto para os jardins quanto para os templos, os palácios, as vilas e os pavilhões, todos em madeira, todos muitas vezes devorados pelas chamas dos incêndios, muitas vezes mofados e apodrecidos ou feitos em pó pelos cupins, mas a cada vez recompostos parte por parte: os tetos de estrados de casca de cipreste prensada, que são refeitos a cada sessenta anos, os troncos das pilastras e do vigamento, as paredes de tábuas, os telhados de bambu, os pavimentos recobertos de tapetes (os indefectíveis tatames, unidade de medida da superfície dos interiores).
Na visita  aos edifícios plurisseculares de Kyoto, o cicerone assinala a cada quantos anos é substituída essa ou aquela estrutra da construção: a caducidade das partes ressalta a antiguidade do conjunto. Surgem e caem as dinastias, as vidas humanas, as fibras dos troncos; o que perdura é a forma ideal do edifício, e não importa se cada porção de seu suporte material foi retirada e trocada inúmeras vezes, e se as mais recentes ainda cheiram a madeira recém-aplainada. Assim, o jardim continua sendo o jardim desenhado cinquenta anos atrás por um arquiteto-poeta, ainda que cada planta siga o curso das estações, das chuvas, do gelo, do vento; assim os versos de uma poesia são transmitidos no tempo, enquanto o papel das páginas nas quais serão vez a vez transcritos se desfaz em pó.
O templo de madeira marca o cruzamento de duas dimensões do tempo; mas para chegar a entendê-lo devemos afastar do pensamento palavras como "o ser e o devir", porque se tudo se reduz à linguagem da filosofia do mundo de onde partimos não valeria a pena ter feito tanta estrada. O que o templo de madeira nos pode ensinar é isto: para entrar na dimensão do tempo contínuo, único e infinito, o único caminho é passar através do seu contrário, a perpetuidade do vegetal, o tempo fragmentado e múltiplo do que se alterna, se dissemina, brota, resseca ou apodrece.
Mais que os templos cheios de estátuas, de alta estrutura em pagode, atraem-me as construções baixas e os interiores guarnecidos apenas de tapetes, que geralmente correspondem a edifícios profanos, vilas ou pavilhões, mas também em alguns casos a templos ou santuários que convidam a uma meditação abstrata, ou a uma concentração incorpórea. Assim é o templo chamado Pavilhão de Prata, ágil construção de madeira em dois andares à margem de um pequeno lago, com uma única estátia (Kannon, encarnação feminina de Buda) num ambiente para a meditação zen chamado Sala do Esvaziamento da Alma. Assim é o templo Manju-in, que um incompetente como eu julgaria que é zen, mas não é: um templo que parece uma mansão de muitas salas baixas, quase vazias, com os tatames, os vasos de ikebana (que nesta estação apresentam ramos de pinho e camélias, estrelítzias e camélias, e outras combinações de outono), poucas e discretas estátuas e muitos jardinzinhos ao redor.
O templo de madeira atinge sua perfeição quanto mais despojado e sem adornos é o espaço que o acolhe, pois bastam a matéria de que é construído e a facilidade com que se pode desfazê-lo e refazê-lo igual a antes para demonstrar que todas as partes do universo podem cair uma a uma, mas que há algo que resta.

CALVINO, Italo. "O Templo de Madeira" em Coleção de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.180-182.

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