quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Oliver Sacks. SEMPRE EM MOVIMENTO: UMA VIDA (2015)


Chamavam-me de Tintudo quando era menino, e ainda me sujo de tinta como há setenta anos. 
Comecei a escrever diários a partir dos catorze anos e, na última vez que contei, eram quase mil. Existem em todos os tamanhos e formatos, desde caderninhos de bolso que andam comigo até volumes enormes. Sempre mantenho um caderno de notas na mesinha de cabeceira, para os sonhos e pensamentos noturnos, e procuro ter sempre um comigo na beira da piscina, à margem de um lago ou na praia; a natação também me ajuda muito a formular pensamentos que preciso anotar, sobretudo quando já se apresentam em forma de frases ou parágrafos completos, como às vezes acontece.
Quando escrevi o livro da Perna, recorri intensamente aos diários pormenorizados que mantive comigo paciente em 1974. Para O diário de Oaxaca, também recorri bastante aos meus cadernos de notas manuscritas. Mas, de modo geral, raramente examino os diários que redigi durante a maior parte da minha vida. O ato de escrever já é suficiente; serve para desanuviar meus pensamentos e sentimentos. O ato de escrever é parte essencial da minha vida mental; as ideias surgem e são moldadas no ato da escrita.
Não escrevo meus diários para os outros e tampouco costumo voltar a eles, mas constituem uma forma especial, indispensável, de conversar comigo mesmo.
A necessidade de pensar por escrito não se restringe aos cadernos de notas. Ela se espalha para o verso de envelopes, cardápios, qualquer pedaço de papel que esteja à mão. E muitas vezes transcrevo citações que me agradam, redigindo ou digitando em folhas de papel colorido, que prego num quadro de avisos. Quando morava em City Island, meu escritório era repleto de citações, que ficavam num fichário que eu pendurava pela argola nas varetas da cortina acima da escrivaninha.
A correspondência também é uma parte importante da vida. De modo geral, gosto muito de escrever e receber cartas -  é um intercâmbio com outras pessoas, outras individualidades - e não raro me vejo escrevendo cartas quando não consigo "escrever" - seja lá o que  significa Escrever (com E maiúsculo). Guardo todas as cartas que recebo, bem como cópias das minhas. Agora, tentando reconstruir partes da minha vida - como o período crucial e muito movimentado quando cheguei aos Estados Unidos, em 1960 -, essas cartas antigas são um tesouro precioso, corrigindo as ilusões e enganos da memória e da fantasia.
Dediquei uma parcela enorme da minha atividade escrita às minhas notas clínicas - e durante muitos anos. Com uma população de quinhentos pacientes no Beth Abraham, trezentos abrigados nos lares das Irmãzinhas e milhares de pacientes entrando e saindo do Bronx State Hospital, escrevi bem mais de mil notas por ano ao longo de muitas décadas, e gostava disso; as minhas anotações eram extensas e detalhadas, e há quem diga que algumas poder ser lidas como romances.
 De todo modo, sou um narrador, um contador de histórias. Desconfio que o gosto pela narrativa é uma disposição humana universal, que acompanha as nossas capacidades de linguagem, de consciência de si e de memória autobiográfica.
O ato de escrever, quando dá certo, me dá um prazer, uma alegria como nada mais na vida. Leva-me para outro lugar - seja qual for o assunto -, onde fico totalmente absorvido, alheio a distrações, preocupações, inquietações ou mesmo passar do tempo. Nesses estados de espírito raros, celestiais, posso escrever ininterruptamente até não conseguir mais enxergar o papel. Só então percebo que anoiteceu e que escrevi o dia inteiro.
Ao longo da vida, escrevi milhões de palavras, mas o ato de escrever continua tão fresco e tão divertido como na época em que comecei, há quase setenta anos.

SACKS, Oliver. Sempre em movimento: uma vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp.327-329.