terça-feira, 23 de junho de 2015

Alejandro Zambra - MEUS DOCUMENTOS (2013)

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A primeira vez que vi um computador foi em 1980, aos quatro ou cinco anos de idade, mas esta não é um recordação pura, provavelmente a confundo com visitas posteriores ao trabalho de meu pai, na Calle Augustinas. Lembro de meu pai com seu eterno cigarro na mão direita, os olhos pretos fixos nos meus enquanto me explicava o funcionamento daquelas máquinas enormes. Ele esperava que minha reação fosse de fascínio, e eu fingia estar interessado, mas assim que podia, escapava para brincar na mesa da Loreto, uma secretária de cabelos e lábios finos que nunca lembrava meu nome.
A máquina de escrever elétrica da Loreto me parecia prodigiosa, com sua pequena tela onde as palavras iam se acumulando até que uma poderosa rajada as cravava no papel. Era talvez um mecanismo similar ao de um computador, mas isso não passava pela minha cabeça. De todo modo, gostava mais de outra máquina, uma Olivetti convencional de cor preta, que conhecia bem, porque na minha casa havia uma igual. Minha mãe tinha estudado programação, mas logo se esquecera dos computadores e preferia aquela tecnologia menor, que continuava atual, porque a popularização dos computadores ainda era algo distante.
Minha mãe não escrevia à máquina para algum trabalho remunerado: o que transcrevia eram as músicas, os contos e poemas de autoria da minha avó, que sempre estava se inscrevendo em algum concurso ou começando enfim o projeto que a tiraria do anonimato. Lembro de minha mãe trabalhando na mesa de jantar, inserindo cuidadosamente o papel-carbono, aplicando comm esmero o corretor quando errava. Teclava sempre muito rápido, usando todos os dedos, sem olhar para o teclado.
Talvez eu possa colocar desta maneira: meu pai era um computador e minha mãe uma máquina de escrever.

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(...)
Tentei tomar posições, no começo erráticas e momentâneas, um pouco como Leonard Zelig: o que queria era me encaixar, pertencer, e se eram de esquerda, eu também podia sê-lo, como também podia ser de direita em minha casa, embora meus pais não fossem realmente de direita, ou melhor, lá em casa nunca se falava de política, salvo quando minha mãe lembrava e lamentava como havia sido difícil conseguir leite para minha irmã durante o governo da Unidad Popular.
Compreendi que uma maneira eficaz de pertencer era ficar calado. Entendi ou comecei a entender que as notícias ocultavam a realidade, e que eu era parte de uma multidão conformista e neutralizada pela televisão. Minha ideia  de sofrimento era agora a imagem de uma criança que teme que seus pais sejam assassinados, ou que cresceu sem conhecê-los, no máximo por algumas poucas fotografias em preto e branco. Ainda que eu fizesse de tudo para me afastar dos meus pais, perdê-los era, para mim, a situação mais desoladora que podia imaginar.
(...)

14

(...)
Hoje é dia 5 de julho de 2013. Minha mãe não tem mais pôsteres no quarto do casal, mas continua fã de Paul Simon. Nesta manhã, por telefone, falávamos  sobre ele, sobre como será sua vida agora, se terá encontrado ou não a felicidade com Edie Brickell. Garanti a ela que sim, porque penso que eu também seria feliz com Edie Brickell.

É noite, é  sempre noite no fim dos textos. Releio, mudo frases, especifico nomes. Tento lembrar melhor: mais e melhor. Corto e colo, aumento a letra, mudo a fonte, a entrelinha. Penso em fechar este arquivo e deixá-lo para sempre  na pasta Meus documentos. Mas vou publicá-lo, quero fazer isso, embora não esteja terminado, embora seja impossível terminá-lo.

Meu pai era um computador, mina mãe uma máquina de escrever. Eu era um caderno vazio e agora sou um livro.

ZAMBRA, Alejandro. "Meus documentos" IN: Meus documentos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp.11-12, 28-29, 31.


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