domingo, 19 de junho de 2011

Haruki Murakami. NORWEGIAN WOOD (1987)



filme do cineasta franco-vietnamita Tran Ahn Hung inspirado no romance de Murakami

*

Uma vez o avião pousado, os sinais de probido fumar se apagarm e uma música de fundo começou a tocar suavemente pelos alto-falantes do teto. Era "Norwegian Wood" dos Beatles,numa lânguida execução orquestrada. A melodia me perturbou, como sempre. Mas desta vez ela me emocionou bem mais do que o usual, revolvendo violentamente algo dentro de mim.
[...] a música mudou para uma canção de Billy Joel. Ergui o resto e, contemplando as nuvens negras que pairavam sobre o mar do Norte, refleti sobre as muitas coisas perdidas no curso da minha vida até aquele momento. O tempo perdido, pessoas mortas ou desaparecidas, emoções que eu nunca mais experimentaria.

MESMO HOJE, PASSADO 18 ANOS, ainda sou capaz de relembrar nitidamente a paisagem da pradaria. [..] Enquanto caminhávamos, Naoko me contou sobre o poço.
Que fascinante é a memória. Enquanto eu estava dentro dessa paisagem praticamente não prestei atenção nela. Não poderia sequer imaginar que 18 anos mais tarde a relembraria em seus pormenores, apesar de nada ter visto nela de tão impressionante. Para ser sincero, na época a paisagem não me causou nenhum interesse em particular. Eu pensava apenas em mim, na linda garota caminhando ao meu lado, no nosso relacionamento e novamente em mim. Estava numa idade na qual não importa o que presenciasse, sentisse e pensasse, tudo no final voltava às minhas mãos como um bumerangue. Como se isso não bastasse, eu estava apaixonado. Uma paixão complicada. Não me sobrava tempo para prestar atenção à paisagem a meu redor.
Agora, porém, a primeira coisa a me vir à mente é a cena da pradaria. O cheiro do capim, a brisa fresca, a silhueta das montanhas, o latido do cão: eram essas coisas que antes de mais nada me assaltavam a memória. Muito distintamente. De tão nítidas, eu tinha a impressão de que se estendesse o braço poderia traçar com o dedo o contorno de cada uma delas. Entretanto, não se via ninguém dentro dessa paisagem. Ninguém. Nem Naoko nem eu. Pergunto-me aonde afinal fomos parar. Como algo assim aconteceu? Aonde foram parar as coisas aparentemente tão importantes: eu, ela, meu mundo? No momento, sequer consigo recordar de imediato o rosto de Naoko. O que tenho entre as mãos é apenas uma paisagem deserta.
É claro que, com tempo suficiente, sou capaz de recordar seu rosto. Suas pequenas mãos frias, os lindos cabelos lisos e macios ao toque, a pequena pinta logo abaixo do lóbulo redondo e delicado da orelha, o casaco chique de pêlo de camelo que ela costumava usar no inverno, o hábito de sempre encarar o ouvinte ao fazer uma pergunta, a voz por vezes ligeiramente trêmula por algum motivo (como se ela tivesse falando de cima de um morro castigado pelo vento): se eu sobrepusesse uma a uma essas imagens, seu rosto logo surgiria naturalmente. Em primeiro lugar, vem-me à memória seu perfil, provavelmente pelo fato de eu e Naoko sempre caminharmos lado a lado. Portanto, o que me lembro dela antes de tudo é sempre o contorno lateral do rosto, e, em seguida, ela se vira para mim, sorrindo docemente, meneando de leva a cabeça, conversando, encarando-me. Exatamente como se procurasse a sombra de um peixinho cruzando ao acaso o fundo de uma fonte límpida.
Mas demora algum tempo até o rosto de Naoko surgir em minha mente dessa forma. Com o passar dos anos, o tempo necessário gradualmente se alonga. Triste, mas é a pura verdade. Os cinco segundos de início suficientes para recordar seu rosto logo se transformam em dez, 30, um minuto. Encompridaram-se exatamente como sombras ao anoitecer. E provavelmente as sombras terminarão dragadas pela absoluta escuridão noturna. Minhas lembranças sem dúvida se distanciam cada vez mais do local onde Naoko costumava estar. Sem dúvida se afastam do lugar onde eu próprio costumava estar no passado. Apenas a paisagem, unicamente essa paisagem da pradaria em outubro, aparece em minha mente repetidas vezes, verdadeira cena simbólica cinematográfica. Sempre que aparece, essa cena dá um chute em alguma parte de meu cérebro. Vamos, acorde, eu continuo aqui; vamos, acorde e analise a razão de eu ainda permanecer por aqui. O chute nunca dói. Não há nenhum tipo de dor. A cada novo chute, apenas um som subsiste ecoando no vazio. E mesmo esse som provavelmente desaparecerá algum dia. Assim como todo o resto de extinguiu no final das contas. Entretanto, dentro do avião da Lufthansa, no aeroporto de Hamburgo, a paisagem chutava meu cérebro de maneira mais demorada e forte que o usual. Acorde, analise a razão. Por isso mesmo escrevo este livro. Sou do tipo de pessoa incapaz de entender bem alguma coisa, seja lá o que for, se não a puser por inteiro no papel.

MURAKAMI, Haruki. Norwegiam Wood. (trad. Jefferson José Teixeira). Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p.7-10.






Norwegian Wood (This bird has flown): I once had a girl, / Or should I say / She once had me. / She showed me her room, / Isn't it good? / Norwegian wood. / She asked me to stay and she told me to sit anywhere, / So I looked around and I noticed there wasn't a chair. / I sat on a rug, / Biding my time, /Drinking her wine. / We talked until two, / And then she said, / It's time for bed. / She told me she worked in the morning and started to laugh, / I told her I didn't and crawled off to sleep in the bath. / And when I awoke, / I was alone, / This bird has flown. /So I lit a fire, / Isn't it good? / Norwegian wood.

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