terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Jonatha Crary. 24/7 CAPITALISMO TARDIO E OS FINS DO SONO (2014)

Em sua inutilidade profunda e passividade intrínseca, com as perdas incalculáveis que causa ao tempo produtivo, à circulação e ao consumo, o sono sempre  estará a contrapelo das demandas de um universo 24/7. A imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo. O sono é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo pelo capitalismo. A maioria das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana - fome, sede, desejo sexual e recentemente a necessidade da amizade - foi transformada em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível,  é que nenhum valor pode ser extraído do sono.
Não é surpreendente que, em todo lugar, esteja em curso uma degradação do sono, dada a dimensão do que está economicamente em jogo.

CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo:  Cosac Naify, 2014, p.20.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Dom Pedro Casaldáliga - LUCRO E ESCRAVIDÃO

O lucro, em todos os tempo e em todos os povos, quando se constitui em critério e justificativa, se alimenta sempre de sangue humano. A escravidão é uma decorrência da insaciável  e inescrupulosa hegemonia do lucro. Ontem e hoje. Na escravidão clássica, na escravidão africana, nesta atual diluída escravidão, que pode ser o trabalho infantil degradante, ou as maquiladoras nos porões da cidade ou a peonagem flutuante nas fazendas latifundiárias. Comprar, vender, roubar vidas humanas é comércio natural para quem faz da ganância razão da própria vida desumana

- Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia/MT

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Murilo Mendes. A HISTÓRIA DO BRASIL (1933)

1930

1) O Clemenceau das montanhas

No dia 3 de  outubro de tardinha
O doutor Olegário Maciel
Em vez de um fuzil
Tinha um relógio na mão.

2) Festa familiar

Em outubro de 1930
Nós fizemos - que animação! -
Um pic-nic com carabinas.

3) Coração do povo

O povo há muitos anos que sofria,
Vai daí resolveu pôr abaixo o papão.
Chamou o cardeal,
Lá se foi o papão
Comer paisagens de queijo na Suíça
E arejar o cavaignac.

Mas na hora do navio sair
O povo ficou com muita pena,
Contratou banda de música
Para tocar dobrados,
Mandou um bouquet de flores ao papão.
Quase que botou ele
No governo outra vez.

4) Itararé

                   1

A maior batalha da América do Sul
Não houve.

                    2

Soldado desconhecido
Não falta em Itararé.

                     3

Um padre meu conhecido
Mal chegou no Itararé
Fez o sinal da cruz,
Regimento caiu no chão.

Ninguém poderá negar,
De alma limpa e boa-fé,
Que esta revolução representa
A vitória do "pelo-sinal".

                      4

No meio do caminho
Me atacou um delírio patriótico,
Resolvi embarcar para Itararé.
No meio do caminho
Entrei num botequim,

Tomei um bruto pifão.
Quando acordei
O papão já estava deposto
E eu já era major.

MENDES, Murilo. "1930" em Antologia Poética. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.39-40.

Murilo Mendes. AS METAMORFOSES (1944)

O EMIGRANTE

A Henri Michaux
A nuvem andante acolhe o pássaro
Que saiu da estátua de pedra.
Sou aquela nuvem andante,
O pássaro e a estátua de pedra.

Recapitulei os fantasmas,
Corri de deserto em deserto,
Me expulsaram da sombra do avião,
Tenho sede generosa,
Nenhuma fonte me basta.
Amigo! Irmão! Vou te levar
O trigo das terras do Egito,
Até o trigo que não tenho.
Egito! Egito! Amontoei
Para dar um dia a outrem:
Eis-me nu, vazio e pobre.
A sombra fértil de Deus
Não me larga um só instante.
Levai-me o astro da febre:
Eu vos deixo minha sede,
Nada mais tenho de meu.

MENDES, Murilo, "O Emigrante" em Antologia Poética. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.82.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Jean-Luc Godard. ACOSSADO (1960)

Cenas Inesquecíveis do Cinema:

 Jean Seberg vendendo o New York Herald Tribune


 Jean-Luc Godard. ACOSSADO (1960)

Valter Hugo Mãe. O PARAÍSO SÃO OS OUTROS (2014)

1
 Reparei desde pequena que os adultos vivem muito em casais. Mesmo que nem sempre sejam óbvios, porque algumas pessoas têm par mas andam avulsas como as solteiras, há casais de mulher com homem, há de homem com homem e outros de mulher com mulher.  Há também casais de pássaros, coelhos, elefantes, besouros, pinguins- que são absurdamente fiéis -, quero dizer: há casais de pinguins, e até golfinhos podem ser casais.Tudo por causa do amor.
O amor constrói. Gostarmos de alguém, mesmo quando estamos parados durante o tempo de dormir, é como fazer prédios ou cozinhar para mesas de mil lugares.
Mas amar é um trabalho bom. A minha mãe diz.

...
A esperança parece inventada pela espera. Eu não sei esperar. Todos os dias me assusta não ter esperança. Quero muito ter. A  minha mãe manda fazer um esforço. Ela diz: acredite, sempre. Eu acredito, só não estou certa de saber ficar à espera. Quando for maior vou seguramente melhorar nesse desafio.

10
...
 Acho que invento a felicidade para compor todas as coisas e não haver preocupações desnecessárias. E inventar algo bom é melhor do que aceitarmos como definitiva uma realidade má qualquer. A felicidade também é estarmos preocupados só com aquilo que é importante. O importante é desenvolvermos coisas boas, das de pensar, sentir ou fazer.

12
Descubro cada vez mais que o paraíso são os outros.Vi num livro para adultos. Li só isso: o paraíso são os outros. A nossa felicidade depende de alguém. Eu compreendo bem.

15
O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa ser uma solução.

MÃE, Valter Hugo. O paraíso são os outros. São Paulo: Cosac Naify, 2014.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Lewis Carroll. ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1865-66)


      Alice estava começando a se aborrecer de ficar sentada ao lado da sua irmã num recosto do jardim, sem nada para fazer. Dava uma ou outra olhadela no livro que a irmã lia, mas implicava:
     - De que serve um livro sem figuras nem diálogos?
     Cheia de preguiça, por causa do calor do dia, ela se perguntava se o prazer de fazer um colar de margaridas valeria o esforço de se levantar e  colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo junto dela.
     Nada havia de muito estranho naquilo. Nem Alice achou assim tão esquisito quando ouviu o Coelho dizer para si mesmo:
    - Oh, meu Deus! Eu vou chegar muito atrasado!
    Mas, quando ele tirou um relógio do bolso do colete, olhou-o  e se apressou, Alice se levantou, dando-se conta de que nunca antes havia visto um coelho nem com colete e nem com um relógio no bolso. Ardendo de curiosidade, seguiu-o correndo, a tempo de vê-lo penetrar numa larga toca sob a cerca.

(...)

    Foi quando se surpreendeu, ao ver o Gato Inglês sentando num galho de árvore a pouca distância dali. O Gato apenas sorriu quando viu Alice. Parecia muito simpático, ela pensou. Tinha, porém, garras muito longas e uma porção de dentes, de modo que ela considerou que deveria tratá-lo com respeito.
    - Gatinho inglês - começou ela, meio tímida, pois não tinha muita certeza se ele iria gostar de ser tratado desse modo.
    O Gato apenas alargou um pouco o sorriso.
   "Ora vejam só! Parece que ele está gostando muito", pensou Alice e foi em frente. - Você poderia me dizer, por gentileza, como é que faço  para sair daqui?
    - Isso depende muito de para onde você pretende ir - disse o Gato.
    - Para mim tanto faz para onde quer que seja... - respondeu Alice.
    - Então, pouco importa o caminho que você tome - disse o Gato.
    - ... contanto que eu chegue em algum lugar ... - acrescentou Alice, explicando-se melhor.
    - Ah, então certamente você chegará lá se continuar andando bastante... - respondeu o Gato.

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Tradução Nicolau Sevcenko. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 11, 74.